20 de outubro de 2006

Dilemas Capilares



O pormenor faz a diferença, é sabido. E fez, anteontem, entre uma viagem agradável no comboio amarelo – o que se traduz em cerca de uma hora de leitura com um índice razoável de concentração, ou apenas partir a horas e chegar à tabela sem grandes alaridos pelo meio –, e o suplício. E detalhe mais ínfimo era difícil. Minudência que, à semelhança de um grão de mostarda, cresceu até se tornar num angustiante dilema moral, envolvendo considerações de âmbito civilizacional na opção entre a urgência do conforto individual e o contributo para a harmonia colectiva.

Tendo por vizinhança três senhoras recatadas, certamente de bons costumes e melhores famílias, e considerando que as difíceis manobras para desbloquear uma situação capilar encravada em local impróprio poderiam gerar equívocos e aborrecimentos, optou-se pela segunda via.

Pelo civismo. Pelo altruísmo. E poderia ter sido bonito. Exemplar, até.

Mas não: o trio, alheio à agonia vicinal, só saiu em Campanhã. Uma hora e um quarto após o triste incidente púbico original.

É por essas, e algumas outras que não interessa agora, que a cena metrossexual deve ter começado a bordo de um comboio amarelo. É também por essas que os grunhos ostentam um ar feliz – porque coçam, afagam e acondicionam os genitais sempre que lhes apetece, indiferentes às convenções sociais. É ainda por essas que as velhinhas são vítimas potenciais de homicídios sem explicação aparente.

16 de outubro de 2006

A Valquíria Ferroviária - Uma Nike Contemporânea


Há mais de 70 anos que o sublime feminino habita o imaginário ferroviário, erotizando o gemido metálico das bielas, o fragor da fornalha em combustão e os suspiros vaporizados do Shangai Express. Nesse comboio em que Josef Von Sternberg construiu um filme mítico, o espectro paradoxalmente sensual de Marlene Dietrich evolui em sugestões incorpóreas de sombras negras e fixa, para a eternidade, a impossibilidade de realizar o desejo. E torna-o, pela sua negação irrevogável, ainda mais apetecível, ainda mais desejável, ainda mais obsessivo.

O comboio amarelo tende a agudizar essa ânsia por Shangai Lily. Porque o esplendor do belo feminil raramente ilumina os périplos suburbanos, como se a fealdade, o horrível e o espúrio lhe fossem inerentes. Quase uma imanência – espécie de cínica compensação, urdida no conluio entre Deus e a Engenharia, pela ausência de sanitários a bordo.

E, no entanto, na viagem nocturna para os arrabaldes de Guimarães, ei-la que avança, ao longo da coxia debruada pelos despojos dos sonâmbulos, a excepção cintilante no mais insuspeito dos mortais – a revisora. Uma fêmea estupenda que, assim remetida à vigilância inquiridora e punitiva das faltas alheias, surge como uma proposição épica fora do contexto à vista quebrada dos viajantes, gratos pela violência daquele percalço discursivo que os arrebatou ao sono.

O escândalo epistemológico e a tragédia gramatical que ocorrem no comboio amarelo são, todavia, mais graves ainda. Porque a mulher que encena a revisora, recusando a passividade dos fatalistas ou dos resignados face ao normativo da função, recria a têxtil cinza e frugal onde está vestida.

Corrompe, com as subtilezas estilísticas da inteligência feminina e o auxílio de pequenos adereços – um lenço colorido, uma jóia singela… – a austeridade marcial da farda. O uniforme, além de sinalizar a sua condição profissional, objectiva também despersonalizá-la, abolir a dimensão humana da funcionária, torná-la apenas expediente sem rosto nem sexo.

Vã intenção do casto estilista; naquela luminária que lhe recodificou o traço inóquo mora um corpo vibrátil, impossível de olvidar e possuído de uma ética singular: aquele corpo não deseja ser outro.

O rosto dela, talvez – há nele um excesso cremoso que pretende iludir as reminiscências do acne, profuso e perfurante, de um pretérito ainda recente. A betonagem espessa de cosmética é demasiado frágil, porém, ao escrutínio mais atento, e no seu exagero configura, até, uma máscara potencialmente expressionista, em que à proximidade máxima sobrepõe-se a máxima estranheza. Numa certa medida, o rosto da revisora é uma obscenidade figurativa…

Mas não o seu corpo. Longo e curvilíneo, como o das deusas macedónias, esplendorosamente carnal e dotado de uma sensualidade invasora, é também ambiguamente púdico e abstracto. Como Shangai Lily, um poderoso agente de sedução que impõe, aos viajantes abrasados por tanta luz, um fosso intransponível entre o desejo e o festim.

Convertidos em vítimas sacrificiais desse rito de volúpia que apenas ocorre nos imaginários exauridos pela rotina conjugal, os passageiros mais lúcidos resignam-se à impossibilidade. E, acometidos de ptialismo repentino, acrescentam utopias impronunciáveis às oscilações daquelas ancas cosmogónicas. Apesar de maduros quase todos, volvem à infância rendidos a uma nova fábula. Anatómica e quase táctil.

Ela ignora-lhes, porém, a reverência e o espanto; alheia ao psicodrama que suscita, passa pelos utentes do comboio amarelo num excurso tangente às libidos em erupção; e, não obstante a marcha firme, senão dura, daquelas pernas que evocam a estatuária helénica, flutua sobre densas nuvens de testosterona.

Nem por um instante, sequer, desvia o seu percurso de colibri, picando bilhetes num clique vigoroso que logo abandona nas mãos trémulas, suadas, dos já fiscalizados. E deixa-os mudos, murchos, exauridos. Desenganados…

Sucede, porém, que a lúbrica luzerna é, afinal, muito mais do que corpo; num dos lapsos do Criador, que tão distraído anda, não raro, da justiça distributiva, calhou em sorte à revisora um cérebro ágil e nervos de ferro. Logística que, associada à compleição favorecida pelo divino, sugerem-na campeã entre as hostes femininas quando deflagrar a guerra dos sexos de alta intensidade.

Enquanto não ocorre a chacina prometida desde o Génesis, a valquíria ferroviária treina os dotes com o critério da oportunidade, o que, no comboio amarelo, dá azo a exercícios frequentes. Há dias, não muitos, materializou-se num passageiro nocturno procedente de Santo Tirso.

Entrou naquela estação, onde não havia vivalma para além dele e da companhia, precedendo um sujeito de cabelos brancos, com as costas curvadas pela idade e pela subserviência, uma mulher magríssima, de olhos tristes e sem resquícios de qualquer graça, e um casal de crianças, menos irrequietas do que seria expectável.

A sucessão desse cortejo nada tem de aleatório, antes obedece a uma rígida hierarquia, ordenada pelos valores patriarcais enraizados no húmus social minhoto e que a Modernidade não logrou erradicar. De resto, o homem, baixo e seco, não se coíbe de afirmá-la ao distribuir, imperativo, os lugares que os demais devem ocupar, desenhando uma geografia do poder nos assentos do comboio amarelo: ele e o sogro num lado, esposa e filhos no outro.

Imediatamente a seguir senta-se, três bancos mais atrás, o último passageiro, também proveniente de Santo Tirso, com ar cansado, ofegante, até, mas de impecável aprumo e bom gosto evidente. Tem cerca de 40 anos, uma pasta de cabedal e um casamento algures.

Lesta, a revisora dirige-se para os recém-chegados com a alfaia picadora em riste.

– O bilhete, por favor – solicita, lacónica mas educada.

– Não temos. Queria cinco bilhetes para Guimarães – replica o líder do clã.

– A ausência de bilhete implica uma multa de 50 euros. A cada um – volve a revisora.

– Pois, mas não vi nenhuma bilheteira a esta hora da noite! – declara o homem, subindo o tom.

– Mas elas estão lá, as máquinas de venda de bilhetes. Tem apenas de seleccionar o seu destino e introduzir o dinheiro necessário… – torna a revisora, cujo discurso didáctico é abruptamente atalhado pelo outro, que se empertiga e larga brados de indignação:

– O quê?! Está a chamar-me mentiroso? Mentiroso? Já lhe disse que não havia bilheteiras e quero cinco bilhetes! Mais nada!

Sangai Lily não perde a compostura nem se intimida com o vozeirão do homenzinho que, no cadastro das metáforas rurais, se assemelha a um garnizé despeitado pelo galinheiro. Pelo contrário, com gestos precisos e vagarosos, arcando uma carga cénica que lhe imprime autoridade e segurança, retira do bolso a esferográfica e o bloco das multas.

– Lamento, mas a sua distracção ultrapassa-me. Receio ter de multá-lo, assim como às pessoas que o acompanham.

– Nem pense! Não havia bilheteiras. Acha que eu sou mentiroso? Mas quem é que pensa que é para falar assim comigo? – grita, literalmente, o garnizé sob o olhar aterrorizado da esposa e da prole, habituadas à convivência com o mau-génio dele, cujas raízes remontam à infância e aos compêndios da escola freudiana.

A seu lado, o senso-comum do sogro, temendo uma catástrofe, leva-o ao atrevimento. E toma uma atitude.

– Desculpe, minha senhora, mas a verdade é que esta é a primeira vez que entramos em Santo Tirso, e não sabíamos da existência dessas máquinas. Se pudesse desculpar-nos e passar os bilhetes, ficava-lhe muito agradecido – balbuciou, crivado pelas chispas oculares que emanam do garnizé.

A revisora cessa imediatamente de escrever, levanta os olhos do papel e pousa-os sobre o homem de cabelos brancos e costas ainda mais curvadas do que há instantes. Percebe nele a carga imensa que transporta, vislumbra na mulher aterrorizada o cárcere a que foi condenada pelo santo matrimónio, detecta nos miúdos uma vivência assolada pelo terror. E decide-se pela compaixão.

– Muito bem. Vou fazê-lo. Por si. – diz, sem trair a comiseração por que foi tomada. Esfíngica. Glaciar.

– Mas ela está a chamar-nos mentirosos! – repetiu o garnizé, cuspindo raiva e censura ao sogro, sem olhar sequer para a revisora. E aquela, mantendo a expressão impaciente que afivelou, informa-o:

– A si, vou multar.

E multou. Sem qualquer protesto do garnizé, cuja crista, se a teve alguma vez, inflectiu para a caixa craniana – onde se suspeita que sobejasse espaço –, esmagado pela valquíria ferroviária.

Cumpridas as formalidades (transmudadas em exéquias de um bronco suburbano no caso do garnizé vimaranense), a revisora acercou-se do outro passageiro que também havia entrado em Santo Tirso.

– A senhora vai-me perdoar, mas eu também não tenho bilhete. Vim a correr para conseguir apanhar o comboio, e confesso que, também por ser a primeira vez que ando nestes comboios, desconhecia as bilheteiras automáticas que referiu… Assim, se tivesse a paciência de me passar um bilhete, ficava-lhe muito grato – disse-lhe, a face muito vermelha perlada por gotículas de suor.

A revisora fita-o por instantes. Depois, mirando por cima do ombro o garnizé multado que tenta ainda processar a humilhação a que se sujeitou, sorri pela primeira vez e replica-lhe, vincando a mensagem subliminar que comporta o perdão:

– Não se preocupe. No seu caso, tenho a certeza que foi mesmo só por distracção.

Algures, Samotrácia terá lamentado não ter à mão escopro e cinzel para eternizar aquela valquíria, Nike contemporânea que espalha luz pela ferrovia.

15 de setembro de 2006

Frustrações Religiosas


Os últimos a embarcar agarraram-se pelos dentes, ingénitos ou protésicos, ao comboio amarelo com o desespero dos naufragados e a complacência do maquinista. Ao estrépito da manada em desalinho que penetrou na composição adormecida em Campanhã, sobreveio a algaraviada com sotaque nortenho produzida pela turba, ampliando o risco de síncope aos passageiros mais fracos do miocárdio. E uma ligeira fúria nos demais, que cerraram o cenho e o natural mutismo de quem não pretende ser incomodado.

Debalde. A massa de grunhos, trajada de azul e branco, ignorou a subtileza do reparo, e prosseguiu no debate, caudaloso de inanidades, com fervor religioso. E o mesmo desprezo pelo semelhante dos fanáticos que cultivam o assassínio ritual.

Porque embora não pareça, esses grunhos são de estirpe muito mais nefasta do que aqueles outros a quem o acne baralha e traumatiza (ver A Revolta do Grunho Suburbano): estes são grunhos maduros e doutrinados. Sorvem o catecismo nas bastas capelas do futebol bairrista, entre uma mine e dois coiratos.

E que, regressando da prédica com evidente desânimo, vacilantes na sua Fé diante da fraca récita que os levou ao Estádio do Dragão, tentam exorcizar fantasmas moscovitas com os gritos furiosos dos impotentes.

Ficaram a nulos. Ficaram fulos. E não ficaram por lá.

2 de setembro de 2006

Beijos suicidas



Atirou-se. Mesmo. Atirou-se assim como os suicidas livres de todo o peso. Atirou-se. Mas atirou-se para a vida. No cais de embarque da linha 6, ela atirou-se, saída do Intercidades que acabava de chegar, para os braços dele, tão ansiosos como ela, desse amplexo que lhes resgata a saudade. Ele que esperava, alheio ao bulício da estação, há demasiado tempo pelo comboio que, chegado à tabela, enfermava de um atraso enorme na figura de um único passageiro: ela, que se atirou nos braços dele como os suicidas.

E como eles estaria livre de todo o peso. E tão leve seria que, enlaçando os braços no pescoço dele, cruzando-lhe as pernas nas espáduas dele, ele não acusou esforço, antes se ajeitou num longo beijo, nunca demasiado longo, mas tão longo como a viagem desse comboio outro que a levou, e desse comboio aqueloutro, este que a trouxe finalmente.

Um beijo só não chegou para repor o curso do Mundo. Por mais longo que fosse, faltaria sempre outro para obliterar a distância, iludir a espera. Por isso trocam novo beijo, mudam a posição e mantém as bocas unidas. Reposicionam-se, ensaiam tangos mudos, contorcem os corpos enlaçados como ginastas olímpicos no limbo da sua paixão. E beijam-se. Os comboios passam por Campanhã, as pessoas passam por Campanhã, o tempo passa por Campanhã, mas não por eles que, num cais de embarque em Campanhã, estão sós, trocando beijos. Longos.

Não há qualquer fotojornalista em Campanhã que imortalize esse beijo mais iconográfico, certamente, que aqueloutro do marinheiro em Times Square, congelado por Eisenstaedt nas páginas da Life. Ou ainda esse outro que Doisneau vislumbrou numa esplanada de Paris. Não há.

Mas há o casal que troca beijos longos.

E aquele passageiro que o observa de longe, nostálgico de beijos assim. Longos. Como se não houvesse mais ninguém. Como se não houvesse amanhã. Um beijo com a intensidade dos beijos de despedida dos suicidas que renegam o convite da morte no abraço da pessoa amada.

1 de setembro de 2006

A revolta do grunho suburbano


O comboio amarelo é fértil em exemplares do grunho juvenil. Principalmente no termo do Verão, quando o balanço da actividade sexual desses energúmenos demonstra, sem equívocos, a frustração das expectativas primaveris e hormonais. Sem surpresas, de resto, excepto para eles próprios, ainda demasiado crentes na utopia. Ou apenas demasiado estúpidos. Enfim, grunhos. Imberbes e suburbanos.

Anteontem, meia dúzia deles entrou, esbaforida, na última carruagem do derradeiro comboio para Guimarães (que parte de S. Bento, no Porto, às 21.45 horas) num atropelo linguístico de impropérios tonitruantes – sintomático da educação deficitária que dá consistência ao arquétipo do grunho suburbano –, e devidamente ataviada com boné de basebol sobre o cabelo rapado nas têmporas e comprido na nuca, brinco minimal no lóbulo esquerdo, bermudas de ganga encardida abaixo do joelho, sapatilhas informes e fedorentas a reclamar desparasitação urgente. Resquícios da cena "grunge", em estado terminal nos EUA, mas ainda vigorosa num Vale do Ave em que a recessão é endémica e permanente.

A genuína estirpe desses grunhos, sublinhada por uma atmosfera sudorífera que gravita em torno das t-shirts alusivas a paraísos tropicais impronunciáveis, se já havia ameaçado revelar-se no tráfego das conversações, afirma-se plena em Águas Santas. O revisor, passando em marcha acelerada pelo grupo, pergunta-lhe se "já está", o que, na economia expressiva do léxico ferroviário, pretende indagar se acaso os bilhetes já teriam sido devidamente "obliterados".

"Já, já…", responde, quase em coro, o grupo. Mas, porque a famigerada natureza do grunho, além de pérfida é também refractária à inteligência, não evita o riso velhaco que celebra o êxito dos burlões. Demasiado audível, porém. Desconfiado, dali a pouco o revisor torna à questão, mas agora com mais disponibilidade.

– Ó chefe, a gente já disse que sim! – replica um dos grunhos, mostrando-se algo agastado com a impertinência do revisor, o mesmo que ainda há pouco era apenas um "gajo trengo cumó caralho". Imperturbável face à hostilidade grupal, exige ver a senha de viagem. De todos.

No silêncio que se abate de imediato, é quase audível a engrenagem, preguiçosa pela falta de uso, do raciocínio grunho em desespero. Surpreendidos pela solicitação formulada nos termos sucintos e vigorosos dos interrogatórios marciais, os grunhos ruborizam primeiro, trocam olhares inquisitivos e aterrados depois, empalidecem um pouco e confessam por fim:

– Não temos, chefe.

O "chefe", incapaz de reprimir o triunfo que aflora a comissura dos lábios, começa a debitar, no tom monocórdico das prédicas dominicais entranhadas no catolicismo rural, as "penalidades previstas para a infracção de viajar sem o título de transporte", termo que pretende traduzir o prosaico "bilhete", mas facilmente adaptável à guia de marcha de um vagão cheio de equídeos, no espírito do "Simplex" governamental.

Os grunhos, por seu turno, nem sequer tentam dissimular o fastio imenso de que são acometidos – bocejam, afagam os genitais, prescrutam a noite pela janela, repõem os auscultadores nas orelhas, ignoram o "chefe" e o seu zelo replicante de funcionário exemplar. Até que, no termo da exposição dele, surge a "coima de 50 euros".

– Foda-se! 50 euros?!? Oi, oi ,oi … Isso é graveto c'mó caralho, meu!... Mas não tenho dinheiro nenhum… E agora?

– Agora saem em Ermesinde. Senão, serei obrigado a chamar a GNR, que vos levará para o posto e, a partir daí, deixa de ser um problema meu… – informa, diligente e satisfeito, o revisor.

O montante deixa os grunhos mortificados. Algures, nos meandros despovoados daqueles cérebros sedentários, aflora uma luzinha, mortiça e trémula, indiciando perigo iminente. A irreverência ofensiva de há instantes dilui-se no pânico do grupo, que se afunda nos bancos do comboio amarelo enquanto o revisor se agiganta no auge da sua autoridade.

– Ó chefe, veja lá, q'a gente não tem guito, a malta foi assaltada no Porto, e este é o último comboio para casa – implora um, encenando sobrancelhas de Pietà, ameaçando genuflectir ali mesmo, no meio da coxia, e chorar a baba e ranho dos inocentes sujeitos à perfídia do destino.

O revisor mira-o, num longo instante que deixa o grupo congelado. O homenzinho na farda cinzenta prolonga a sua mudez e o sofrimento dos grunhos suspensos da sua decisão; desfruta, enfim, do pouco poder que as insígnias da CP lhe conferem. Sem elas, será pouco; ali, pode e manda.

– Para onde vão? – diz, acalentando a esperança de um gesto perdulário a que se agarra o grupo como náufragos a (meio) caminho das Canárias.

– Para Vizela – declara um dos grunhos, cujo ascendente sobre os demais é notório na espessura dos bíceps.

– Então é assim: se pagarem os bilhetes, desta vez a coisa passa; senão, têm que me entregar o BI.

E partiu para outra zona do comboio amarelo, deixando os grunhos a ponderar, num tropel de opiniões diversas, anarquia bruta e ignorância vasta – "que merda é essa de BI, meu?" –, a proposta do revisor.

Aquele regressa, no mesmo passo eficiente, para se inteirar da decisão. A ansiedade tomou, entretanto, conta de todos os passageiros, a maioria grata pelo episódio redentor que sustentará doutas considerações sobre a imoralidade das sociedades contemporâneas, claramente condenadas à barbárie por culpa da juventude que já nada respeita, e a minoria apenas divertida com o embaraço dos grunhos. Inflacionado pela ausência de pecúlio capaz de pagar um único bilhete, ainda assim garimpado a custo nos bolsos avaros das bermudas.

– Então, tenho muita pena, mas vou ter que vos multar. Os bilhetes de identidade, por favor – sentencia o revisor, máscara sem expressão imune aos apelos dos grunhos que multiplicam atenuantes. Debalde.

Um dos grunhos, porém, alega não ter BI. Nem carta de condução. Nem passaporte. Nada que o identifique.

– Então terá que me dar os seus elementos.

– Qu'elementos?

- A morada completa e número de telefone.

– Só isso?

– Só isso.

– Tá bem, prontos.

Anotados os "elementos" num bloco timbrado, o revisor abala dali, tornando aos seus afazeres. O grupo troca impressões sobre a ocorrência, especula sobre os efeitos que poderá ter nos cadastros respectivos, as possibilidades de furtar a multa na caixa de correio familiar, os meios susceptíveis de colectar 50 euros dispensando a improvável generosidade paterna. E, enquanto se entrega a semelhantes considerações, apenas um dos grunhos se abstém de comentários, e chega, até, a parecer satisfeito. O que não passa desapercebido aos grunhos parlamentares:

– Que foi, caralho? O filho da puta do 'pica' fodeu-nos à grande e tu 'inda gozas? Não deves ser bem suficiente dos cornos…

– Ná, a cena é que o gajo mamou os 'elementos' marados que lhe dei.

Reinação total. Exultam os grunhos com a estultícia do outro – "comeste o cabrão, man, comeste o gajo todo" –, e já se posta, de novo, o revisor presumivelmente deglutido nas cercanias daquele arraial.

– Desculpe, mas pedia-lhe que repetisse os seus elementos, por favor – diz a farda cinza, dirigindo-se ao grunho predador, reputado canibal de ferroviários.

– Ó chefe, foda-se, outra vez? – exclama, a voz embargada por um engulho de aflição.

– Se fachavor – replica o outro, impositivo.

Para infortúnio do grunho enganador, a memória era-lhe demasiado volátil para abarcar o questionário, e torna-se desastrosa quando é instado a conferir o contacto telefónico.

– O seu telemóvel é TMN, Telecel ou Optimus?

– Bom, é… é… 91…

– 91?!? Mas então não era o 964?…

– Ora, foda-se, nem telemóvel tenho, chefe! – confessa, já no limiar do desespero suicida, o grunho sujeito à confirmação.

O "chefe", cuja mãe recuperara subitamente a dignidade e, quiçá, a virgindade na consideração dos grunhos, guarda o bloco de anotações com gestos estudados, numa lentidão exasperante, concluindo:

– Acabou de perder a sua última oportunidade!

Oh, ignomínia. E Vizela já ali tão perto, e o apeadeiro já a seguir. E era. Por isso saíram, os grunhos, cabisbaixos, humilhados pelo homenzinho de farda cinzenta que agora percorre a coxia com as costas muito direitas, como se tivesse engolido um garfo ou esquecido de tirar o cabide onde pendura a camisa. Passeia-se como o monarca guerreiro que regressa de uma campanha difícil, mas bem sucedida, que terá garantido a integridade fronteiriça ao seu império e a glória da coroa.

Na noite seguinte, quando o comboio amarelo parou na estação de Vizela pelas 22.46 horas, aguardava-o uma turba de meliantes adolescentes em bermudas surradas e chapéus de basebol. Aos gritos, exigiam a presença do revisor cuja mãe tornara à prostituição desvairada das ninfomaníacas, manifestando vontade de comê-lo, outra vez, mas no sentido figurado dos sodomitas, e depois de amaciado ao soco, cabeçadas e pontapés, entre outras propostas, mais ou menos sanguinolentas, mas igualmente pouco saudáveis.

Os grunhos enxovalhados na véspera haviam convocado a tribo toda – e Vizela constitui, aparentemente, ecossistema fértil em grunhos – para consumar a vingança que tinham jurado entredentes, esquecendo, como é timbre dos grunhos, que não há revisores residentes no comboio amarelo. Frustrada a empresa, a embaixada de grunhos exprime a raiva no dorso do comboio amarelo, bate nos vidros, dá pinotes e piruetas, aos urros, numa coreografia asinina estridulante.

E, quando o comboio amarelo retoma o percurso, ocorre que o léxico burocrático tem as suas razões. Metidos numa carruagem com manjedoura, os grunhos deveriam ter direito a "título de transporte". A guia de marcha. Gratuita. Rumo a um estábulo qualquer.

30 de agosto de 2006

Locomotiva de Noé


Se a Arca de Noé tivesse rodas, seria amarela e andaria sobre carris. Todos os animais seriam passageiros pagantes ou beneficiários do passe social. Os indigentes, esses, estariam condenados ao Dilúvio. Uma hipótese bíblico-ferroviária que, baseada na observação participante e quotidiana da linha Porto-Guimarães, procura contribuir para sanar a profunda discordância entre criacionistas e evolucionistas.

Ass: Noé, o proto-maquinista

29 de agosto de 2006

Kitsch global


Se as almas do casal são gémeas, os crânios em que habitam nem por isso.

A cabeleira da senhora, tingida por um castanho demasiado uniforme, demasiado anacrónico para ser natural, denota um aprumo cirúrgico, próprio daquela auto-estima excessiva que advêm com a idade e a consciência feminina da beleza desolada pelos anos que urge reparar. E repara, na minúcia dos antiquários obcecados com o restauro de jóias embaciadas pelo tempo.

O açaimo da laca intransigente contrasta com o desarranjo capilar do companheiro. Tão idoso como ela, ostenta um novelo grisalho em desalinho permanente, que a mais leve brisa converte em flâmula vigorosa, drapejando caracóis de propaganda anarquista.

Visto pela rama – literalmente –, o casal de velhos configura um conflito sem acordo possível…

Pura ilusão. Olhar mais atento descobre uma harmonia retroactiva de gestos e gostos. Sentados nos bancos de inox brilhante, polido pelo trânsito contínuo de nádegas cansadas, os velhos prolongam-se no mesmo vagar absorto com que bebem a Coca-Cola dietética, nas manchas castanhas que polinizam as mãos e o rosto, no trajar iconoclasta que lhes reveste o corpo com fatos de treino dissonantes dos sapatos austeros, de fino cabedal e desenho clássico, que o trazem calçado.

O dela é branco, listado a vermelho nos braços e nas pernas, sem nexo aparente com as sandálias "stilleto", finíssimas e talhadas sobre o cadáver de répteis incautos, tal como a carteira a tiracolo; o dele é azul, mas de matiz indefinido, riscado no peito por faixas de amarelo, num divórcio irrevogável com os sapatos de matriz Gucci, ostentando as conceituadas ferragens sobre o cabedal preto e uma tira de tecido bicolor.

A heresia do casal – cujo idioma quebrado e tez nívea remetem para os paradigmas nórdicos – é notada por duas meninas em idade casadoira que deambulam pelo cais nocturno e quase desértico de Campanhã. Versadas na liturgia da MTV, doutrinadas pelo fascismo dos franshisados colonialistas e vestidas pelos saldos de Verão, largam os corpos em gargalhadas ostensivas, contorcendo, na enfatização grotesca do riso, a cintura desnatada que alberga zircão no umbigo.


O casal de forasteiros apercebe-se da zombaria sem tino das meninas muito "fashion", muito jovens, frescas e borbulhantes, que se prolonga até à chegada do comboio amarelo – dali a nada, aliás. Depositando, com rigor pedagógico, as latas vazias no lixo, enlaçam as mãos e dirigem-se, como adolescentes enamorados, para a composição. Nas mãos livres, ela transporta um saco de cabedal, ele um porta-fatos liso, elegante.

Ao passarem pelo par que gargalha ainda, a senhora do cabelo blindado, olhando de soslaio, sorri. Discreta. E olha uma última vez ainda, antes de entrar na carruagem. Sorrindo sempre. Com toda a discrição, num sorriso mordaz.

Talvez tivesse reparado nas costuras tortuosas, paridas por agulhas com Parkinson alojadas nos tugúrios fabris do Vale do Ave, que vestem as meninas dadas à semiótica da futilidade, não obstante trazerem bordada, nas camisolas de alças que falseiam o volume do peito, a griffe de um famoso costureiro norte-americano muito aclamado na feira de Espinho.

Ou talvez houvesse percebido nelas o ensejo de escaparem ao lumpen pela via da aparência, adequando-a aos cânones do efémero em mutação constante – que tornam aceitáveis nos melhores salões, e até chiquérrimas, as "havaianas", reciclagem pós-modernista do xanato que envergonhava os pobres de antanho – após pesquisas demoradas pelas saladas televisivas da época.

O talvez tivesse percebido que o kitsch é universal, embora com expressões diversas – Dorfles ganhou a vida a prová-lo, Eco e Lipovetsky divertiram-se a fazê-lo.

De qualquer modo, o gosto não se compra – seja na Rodeo Drive ou na Feira da Vandoma (é por isso que há javardos que ignoram as pérolas e reclamam diamantes).

O gosto cultiva-se

Num e noutro caso, baldaram-se às noções mínimas… Campanhã, ao fim e ao cabo, também não inspira ninguém.

Como se percebe pela prosa. Há dias assim.

24 de agosto de 2006

A besta de Darwin


No comboio terminal para Guimarães, ao respirar mecânico da composição amarela, ansiolítico e quase sedativo, sobrepõe-se quase sempre um silêncio monástico. Inspirado pelo breu nocturno, ratificado pela vacuidade dos lugares sem bilhete e alimentado pelo alheamento opiáceo dos esparsos viajantes, privados de companhia ou saturados dela. Essa espécie de recolhimento sem meditação não chega a ser perturbada pelos noviços, inopinados por tão raros, que procedem dos apeadeiros. Geralmente, entram naquele cenóbio ambulante com a muda reverência dos acólitos ou trazem o aspecto do refugiado que já só busca um pouco de paz. Sentam-se, adequam a vista à luz hospitalar das carruagens e volvem ao conforto do anonimato.

A semana passada, porém, o alarde de uma alegria furiosa eclipsou aquela placidez conventual. Uma família – pai, mãe e duas filhas ainda sem idade para militar na escolaridade obrigatória do 2.º Ciclo – entraram em Ermesinde, plataforma distributiva para os recônditos setentrionais, trazendo com ela o ruído de uma convivência doméstica disfuncional. A ocorrência, já de si excepcional, converteu-se rapidamente numa experiência antropológica singular, elucidativa das fragilidades que esburacam as teses darwinistas. Afinal, o elo entre os símios e o Homem não se perdeu – esse vil mamífero, díscolo e beligerante, existe. Está entre nós e frequenta comboios amarelos.

E, no entanto, a cena até sugeria certa redenção.

As meninas, algo franzinas e um pouco andrajosas, reflectindo uma felicidade pueril nas arcadas sujeitas à mutilação própria da idade, precedem o casal em saltinhos de contentamento, solicitando as atenções paternas em apelos constantes – ó pai olha, ó pai diz, ó pai explica, ó pai isto, ó pai aquilo, ó pai, ó pai, ó pai… – pequeno martírio consentido pelos passageiros, mais apáticos do que nostálgicos da infância perdida.

A mãe, ainda nova (embora o corpo acuse exageros nutritivos nas ancas rotundas e no peito, ubérrimo, em queda livre), irradia como as nubentes rumo ao altar consentido. Enlaçada aos abdominais do companheiro, muito mais alto do que ela, poderia até flutuar… Caso o outro não lhe ignorasse o afago, caso não acelerasse o passo, arrastando-a pela coxia do comboio, desejando nitidamente um acidente que a faça tropeçar, desembaraçando-o daquele afecto pegajoso que repudia.

Ela parece não dar por isso. Talvez pela habituação ao trato de reminiscências mouriscas, provavelmente pela saudade perdulária desse marido que torna de uma ausência forçada pelo cárcere em Paços de Ferreira, ri muito, num excesso de gargalhadas, da prole irrequieta, igualmente excitadíssima com a novidade da companhia.

O homem, orçando pelos 30 anos, não lhes dedica, porém, mais do que um vislumbre, não lhes concede mais do que um bocejo de aborrecimento antes de atirar o saco dos haveres para o chão e largar o corpo, pesadamente, no banco. A mulher, convertida em apêndice, não o solta. Finca as unhas, lacadas a vermelho tonitruante de pincel incerto, nos braços do cônjuge – musculosos e tatuados por artista desenganado e analfabeto –, desabando com ele na fímbria do assento.

O marido acomoda-se, estirando as pernas. Deposita as texanas oleosas no banco da frente, indiferente ao cenho reprovador dos circunstantes insones. As calças, muito cingidas – tal como a camisola negra, de resto – insinuam os genitais na ganga coçada pelo uso, impondo categóricas a condição de macho no relevo da vergôntea. A fidelíssima esposa lança um vislumbre discreto àquela promessa de orgasmos que a prisão adiou, alçando os olhos ao rosto duro que ensaia novo bocejo, indeferindo a súplica dela. Que não desiste, antes persiste na contemplação do outro, possuída daquela admiração incondicional, canídea, mescla de romantismo e fixação mórbida, que redunda na idolatria. E ele, investido dessa petulância divina, castiga-lhe o pecado de um beijo, tangencial mas famélico, no pescoço bovino com safanão brusco.

– Estou todo roto. Vê lá se me deixas dormir, caralho! – justifica, imprimindo um timbre ácido, definitivo, no metal da voz.

As filhas, embora pequenas, acorrem alarmadas para resgatar a mãe.

– Ó pai, olha como nós sabemos dançar com'à Shakira –, dizem, iniciando meneios de ancas que pretendem mimar o erotismo da odalisca colombiana. A mãe, grata, socorre-se dos rebentos para eludir a desilusão. E sorri de novo. Acostumada a esperar, adestrada no servir.

Mas o homem, com desprezo esclavagista, cruza os braços sobre o peito e cerra os olhos, vociferando impropérios que enunciam falta de paciência para graças infantis.

– Calai-vos, meninas, que o vosso pai quer descansar – apressa-se a mulher, menos autoritária do que suplicante. As miúdas descodificam o registo. Afastam-se dali, algo cabisbaixas, e sentam-se finalmente noutro banco. Um passageiro condoído pisca-lhes o olho, tenta insuflar-lhes algum ânimo nos egos devastados. Debalde. Estão tristes, de uma tristeza profunda, sem remédio.

A mulher rodeia a provação com estoicismo. Revelando falta de tonsura nas axilas, logra passar-lhe um braço pela nuca. Precipita os dedos para o peito másculo do marido, simulando, na passagem suave das unhas sobre os mamilos do macho, desenhos de signos antigos, convites abrasivos traficados, de geração em geração, entre as mulheres amantíssimas tomadas pelos ardores do sexo.

– Foda-se! Não tens espaço? A gente fala mais logo, que agora quero dormir, já te disse. Que merda! – atira-lhe ele.

A mulher obedece. E afasta-se, junta-se às filhas, abancadas mais à frente, num silêncio sepulcral, velando o cadáver das suas ilusões, assassinadas com inusitada brutalidade pelo homem que ainda resfolega e se acomoda de novo ao veludo do banco.

A promessa dele, implícita no ralho boçal, não restitui qualquer ânimo à fêmea recusada. Lá no fundo, sabe que o reenvio para o futuro é apenas o subterfúgio do fracasso, literal fuga para a frente do brutamontes em liberdade. Ainda que, mais logo, deitados no lodo dos lençóis, ele cumpra, e se enlacem como animais vorazes, ela sabe, com a sapiência das mulheres já por demasiadas vezes feridas, que se trata apenas de satisfação orgânica, de contacto sem intimidade. Sabe que os gemidos dele – sufocados, no hábito da masturbação discreta das casernas – remetem mais para o desejo de outros corpos do que para o dela, tão igual ao da Vénus de Willendorf.

E, todavia, nenhum outro seria mais apropriado ao conúbio de tal besta paleolítica.

22 de agosto de 2006

Suicidas estivais


Rompendo glorioso o plúmbeo matiz que acometeu, nos últimos dias, os céus de Portugal – vertendo nos contribuintes mais cinza do que os incêndios que alimentam a sessão pornográfica sazonal, televisionada sem bolinha vermelha, onde evoluem bombeiros no limiar da resistência, saturados de manobrar mangueiras inúteis como falos exangues –, o Sol regressou. E, com ele, a multidão suburbana ao comboio amarelo. Comprime-se a massa "heliocrática" de veraneantes, ecléctica de bronzeados tardios, relapsos e debutantes, nas carruagens saturadas de gente. Equipadíssima para o tardo culto do estio nos areais do Grande Porto – guarda-sóis, pára-ventos, bóias, braçadeiras, revistas de supermercado e os êxitos literários das gasolineiras, mais a inefável lancheira, mais o creme hidratante de eficácia duvidosa, mais o bronzeador que só um decapante sulfúrico poderá remover, mais o protector solar que jura filtrar tudo menos o cancro da pele, mais o leitor de mp3 oferecido com a barra de sabão rosa, mais a consola portátil comprada na loja do contrabando chinês, mais… Vão como as tropas de elite quando partem para destroçar países demasiado ricos para serem economicamente viáveis. Uns e outros, seguem para a guerra. Quando regressarem, uns e outros terão sobrevivido ao horror. Mas só os primeiros se lançarão, com a felicidade plena da indigência, para o arsenal bioquímico que os aguarda. Disfarçado de areia e mar.

21 de agosto de 2006

Doenças oculares


A primeira paragem do último comboio amarelo para Guimarães, seis minutos depois de partir da estação de S. Bento, no Porto, ocorre em Campanhã, esse vasto não-lugar saturado por gente de ansiedade cronometrada que as linhas distribuem para todo o lado, na urgência de arrumá-la. Na maior parte das vezes, trata-se de um processo ecológico, que descongestiona a paisagem de elementos perturbadores, vagamente antropomórficos, mas definitivamente horrendos (se bem que, embora muito raramente, também ouse furtar, à diletância cansada da vista poluída, produtos de formulação genética que seria útil clonar, em vez de ovelhas, ratos, e demais fauna sem préstimo…).

Naquela hora já algo tardia (21:51) para o funcionalismo suburbano, os passageiros que entram não compensam aqueles que saem, deixando ainda mais vazio o comboio amarelo. O que é óptimo para uma primeira abordagem ao sono – restaurando energias para suportar a maratona de novelas que sucede ao jantar, os lamentos das digníssimas esposas em pantufas surradas, as birras dos filhos tão caprichosos como as mães e as facturas do monopólio da electricidade –, ou para fruir de leituras mais densas. Sucede, porém, que nem todos se entregam a exercícios tão recomendáveis. Há aqueles que, desconfiados da própria Humanidade que partilham, persistem na sua vigília. Colam os olhos a terceiros e vigiam os outros. Dissecam-nos, analisam-nos e classificam-nos. Como objectos. São utentes solitários, geralmente invejosos, amargos e coleccionadores de inferências e conjecturas.

Aquela atitude analítica insistente torna-se razoável quando o comboio segue cheio. Com o espaço vital circunscrito à largura dos ombros – ou ao volume dos glúteos e à grossura das coxas -, os membros tolhidos pela compressão da massa embarcada, sem possibilidade de mexer outra coisa que não o nervo ocular, é quase natural forçar o movimento. Para afirmar a vida (parar é morrer). Ou por mera atitude lúdica. Como distracção neuronal. Olhar sem ver, apenas. Fora isso, é sintoma de uma qualquer descompensação patológica.

Sucede que, por vezes, o fluxo de olhares em trânsito inunda o comboio amarelo, ocupa todos os espaços vazios numa cacofonia de pupilas irrequietas, ansiosas, violadoras. No comboio amarelo, por demasiadas vezes, só viajam doentes que concorrem no trauma da exposição intrusiva.

18 de agosto de 2006

Equívoco

Ups!... apeadeiro errado. Saí atrás dela e era travesti. Não tinha buço...