1 de setembro de 2006

A revolta do grunho suburbano


O comboio amarelo é fértil em exemplares do grunho juvenil. Principalmente no termo do Verão, quando o balanço da actividade sexual desses energúmenos demonstra, sem equívocos, a frustração das expectativas primaveris e hormonais. Sem surpresas, de resto, excepto para eles próprios, ainda demasiado crentes na utopia. Ou apenas demasiado estúpidos. Enfim, grunhos. Imberbes e suburbanos.

Anteontem, meia dúzia deles entrou, esbaforida, na última carruagem do derradeiro comboio para Guimarães (que parte de S. Bento, no Porto, às 21.45 horas) num atropelo linguístico de impropérios tonitruantes – sintomático da educação deficitária que dá consistência ao arquétipo do grunho suburbano –, e devidamente ataviada com boné de basebol sobre o cabelo rapado nas têmporas e comprido na nuca, brinco minimal no lóbulo esquerdo, bermudas de ganga encardida abaixo do joelho, sapatilhas informes e fedorentas a reclamar desparasitação urgente. Resquícios da cena "grunge", em estado terminal nos EUA, mas ainda vigorosa num Vale do Ave em que a recessão é endémica e permanente.

A genuína estirpe desses grunhos, sublinhada por uma atmosfera sudorífera que gravita em torno das t-shirts alusivas a paraísos tropicais impronunciáveis, se já havia ameaçado revelar-se no tráfego das conversações, afirma-se plena em Águas Santas. O revisor, passando em marcha acelerada pelo grupo, pergunta-lhe se "já está", o que, na economia expressiva do léxico ferroviário, pretende indagar se acaso os bilhetes já teriam sido devidamente "obliterados".

"Já, já…", responde, quase em coro, o grupo. Mas, porque a famigerada natureza do grunho, além de pérfida é também refractária à inteligência, não evita o riso velhaco que celebra o êxito dos burlões. Demasiado audível, porém. Desconfiado, dali a pouco o revisor torna à questão, mas agora com mais disponibilidade.

– Ó chefe, a gente já disse que sim! – replica um dos grunhos, mostrando-se algo agastado com a impertinência do revisor, o mesmo que ainda há pouco era apenas um "gajo trengo cumó caralho". Imperturbável face à hostilidade grupal, exige ver a senha de viagem. De todos.

No silêncio que se abate de imediato, é quase audível a engrenagem, preguiçosa pela falta de uso, do raciocínio grunho em desespero. Surpreendidos pela solicitação formulada nos termos sucintos e vigorosos dos interrogatórios marciais, os grunhos ruborizam primeiro, trocam olhares inquisitivos e aterrados depois, empalidecem um pouco e confessam por fim:

– Não temos, chefe.

O "chefe", incapaz de reprimir o triunfo que aflora a comissura dos lábios, começa a debitar, no tom monocórdico das prédicas dominicais entranhadas no catolicismo rural, as "penalidades previstas para a infracção de viajar sem o título de transporte", termo que pretende traduzir o prosaico "bilhete", mas facilmente adaptável à guia de marcha de um vagão cheio de equídeos, no espírito do "Simplex" governamental.

Os grunhos, por seu turno, nem sequer tentam dissimular o fastio imenso de que são acometidos – bocejam, afagam os genitais, prescrutam a noite pela janela, repõem os auscultadores nas orelhas, ignoram o "chefe" e o seu zelo replicante de funcionário exemplar. Até que, no termo da exposição dele, surge a "coima de 50 euros".

– Foda-se! 50 euros?!? Oi, oi ,oi … Isso é graveto c'mó caralho, meu!... Mas não tenho dinheiro nenhum… E agora?

– Agora saem em Ermesinde. Senão, serei obrigado a chamar a GNR, que vos levará para o posto e, a partir daí, deixa de ser um problema meu… – informa, diligente e satisfeito, o revisor.

O montante deixa os grunhos mortificados. Algures, nos meandros despovoados daqueles cérebros sedentários, aflora uma luzinha, mortiça e trémula, indiciando perigo iminente. A irreverência ofensiva de há instantes dilui-se no pânico do grupo, que se afunda nos bancos do comboio amarelo enquanto o revisor se agiganta no auge da sua autoridade.

– Ó chefe, veja lá, q'a gente não tem guito, a malta foi assaltada no Porto, e este é o último comboio para casa – implora um, encenando sobrancelhas de Pietà, ameaçando genuflectir ali mesmo, no meio da coxia, e chorar a baba e ranho dos inocentes sujeitos à perfídia do destino.

O revisor mira-o, num longo instante que deixa o grupo congelado. O homenzinho na farda cinzenta prolonga a sua mudez e o sofrimento dos grunhos suspensos da sua decisão; desfruta, enfim, do pouco poder que as insígnias da CP lhe conferem. Sem elas, será pouco; ali, pode e manda.

– Para onde vão? – diz, acalentando a esperança de um gesto perdulário a que se agarra o grupo como náufragos a (meio) caminho das Canárias.

– Para Vizela – declara um dos grunhos, cujo ascendente sobre os demais é notório na espessura dos bíceps.

– Então é assim: se pagarem os bilhetes, desta vez a coisa passa; senão, têm que me entregar o BI.

E partiu para outra zona do comboio amarelo, deixando os grunhos a ponderar, num tropel de opiniões diversas, anarquia bruta e ignorância vasta – "que merda é essa de BI, meu?" –, a proposta do revisor.

Aquele regressa, no mesmo passo eficiente, para se inteirar da decisão. A ansiedade tomou, entretanto, conta de todos os passageiros, a maioria grata pelo episódio redentor que sustentará doutas considerações sobre a imoralidade das sociedades contemporâneas, claramente condenadas à barbárie por culpa da juventude que já nada respeita, e a minoria apenas divertida com o embaraço dos grunhos. Inflacionado pela ausência de pecúlio capaz de pagar um único bilhete, ainda assim garimpado a custo nos bolsos avaros das bermudas.

– Então, tenho muita pena, mas vou ter que vos multar. Os bilhetes de identidade, por favor – sentencia o revisor, máscara sem expressão imune aos apelos dos grunhos que multiplicam atenuantes. Debalde.

Um dos grunhos, porém, alega não ter BI. Nem carta de condução. Nem passaporte. Nada que o identifique.

– Então terá que me dar os seus elementos.

– Qu'elementos?

- A morada completa e número de telefone.

– Só isso?

– Só isso.

– Tá bem, prontos.

Anotados os "elementos" num bloco timbrado, o revisor abala dali, tornando aos seus afazeres. O grupo troca impressões sobre a ocorrência, especula sobre os efeitos que poderá ter nos cadastros respectivos, as possibilidades de furtar a multa na caixa de correio familiar, os meios susceptíveis de colectar 50 euros dispensando a improvável generosidade paterna. E, enquanto se entrega a semelhantes considerações, apenas um dos grunhos se abstém de comentários, e chega, até, a parecer satisfeito. O que não passa desapercebido aos grunhos parlamentares:

– Que foi, caralho? O filho da puta do 'pica' fodeu-nos à grande e tu 'inda gozas? Não deves ser bem suficiente dos cornos…

– Ná, a cena é que o gajo mamou os 'elementos' marados que lhe dei.

Reinação total. Exultam os grunhos com a estultícia do outro – "comeste o cabrão, man, comeste o gajo todo" –, e já se posta, de novo, o revisor presumivelmente deglutido nas cercanias daquele arraial.

– Desculpe, mas pedia-lhe que repetisse os seus elementos, por favor – diz a farda cinza, dirigindo-se ao grunho predador, reputado canibal de ferroviários.

– Ó chefe, foda-se, outra vez? – exclama, a voz embargada por um engulho de aflição.

– Se fachavor – replica o outro, impositivo.

Para infortúnio do grunho enganador, a memória era-lhe demasiado volátil para abarcar o questionário, e torna-se desastrosa quando é instado a conferir o contacto telefónico.

– O seu telemóvel é TMN, Telecel ou Optimus?

– Bom, é… é… 91…

– 91?!? Mas então não era o 964?…

– Ora, foda-se, nem telemóvel tenho, chefe! – confessa, já no limiar do desespero suicida, o grunho sujeito à confirmação.

O "chefe", cuja mãe recuperara subitamente a dignidade e, quiçá, a virgindade na consideração dos grunhos, guarda o bloco de anotações com gestos estudados, numa lentidão exasperante, concluindo:

– Acabou de perder a sua última oportunidade!

Oh, ignomínia. E Vizela já ali tão perto, e o apeadeiro já a seguir. E era. Por isso saíram, os grunhos, cabisbaixos, humilhados pelo homenzinho de farda cinzenta que agora percorre a coxia com as costas muito direitas, como se tivesse engolido um garfo ou esquecido de tirar o cabide onde pendura a camisa. Passeia-se como o monarca guerreiro que regressa de uma campanha difícil, mas bem sucedida, que terá garantido a integridade fronteiriça ao seu império e a glória da coroa.

Na noite seguinte, quando o comboio amarelo parou na estação de Vizela pelas 22.46 horas, aguardava-o uma turba de meliantes adolescentes em bermudas surradas e chapéus de basebol. Aos gritos, exigiam a presença do revisor cuja mãe tornara à prostituição desvairada das ninfomaníacas, manifestando vontade de comê-lo, outra vez, mas no sentido figurado dos sodomitas, e depois de amaciado ao soco, cabeçadas e pontapés, entre outras propostas, mais ou menos sanguinolentas, mas igualmente pouco saudáveis.

Os grunhos enxovalhados na véspera haviam convocado a tribo toda – e Vizela constitui, aparentemente, ecossistema fértil em grunhos – para consumar a vingança que tinham jurado entredentes, esquecendo, como é timbre dos grunhos, que não há revisores residentes no comboio amarelo. Frustrada a empresa, a embaixada de grunhos exprime a raiva no dorso do comboio amarelo, bate nos vidros, dá pinotes e piruetas, aos urros, numa coreografia asinina estridulante.

E, quando o comboio amarelo retoma o percurso, ocorre que o léxico burocrático tem as suas razões. Metidos numa carruagem com manjedoura, os grunhos deveriam ter direito a "título de transporte". A guia de marcha. Gratuita. Rumo a um estábulo qualquer.