22 de fevereiro de 2007

Colóquios Substantivos


A poluição visual resultante do argumentário em torno da liberalização e da penalização da prática do aborto sob patrocínio estatal desapareceu do comboio amarelo na segunda-feira passada. Finalmente! Do debate sobraram apenas as manchetes dos diários gratuitos que pululam pelo veludo vermelho em que o povo abanca o cansaço, a espondilose cervical e as malditas varizes, gritando no papel de má qualidade: "Sim vence!!!". Ena… A titulação não especifica, porém, quem perde.


O que seria mau jornalismo caso a questão tivesse interessado a muitos para lá dos políticos que distraem as massas com matérias uterinas… Mas, concedendo que terá suscitado a atenção de alguma minoria de votantes, não foi, porém, a dos utentes do comboio amarelo. Porque mais do que nortenhos, os minhotos suburbanos que nele viajam, já esclarecidos nas prédicas dominicais e precavendo o futuro post mortem na graça do Senhor que tudo vê e julgará, ignoraram a campanha agressiva fomentada por um e outro lado da marquesa — com os fósseis do PCTP/MRPP a reciclarem cartazes do referendo de 1998, artesanais e nulos de ideias, colados no apeadeiro de Covas num óptimo exemplo de estupidez revolucionária fora de prazo…


Beatíficos, os nativos do verde Minho dispensaram a consulta de panfletos e preferiram o aconchego de amuletos consagrados (ou de fetos de gesso produzidos na China pelos mesmos operários famélicos que encerram fábricas no Vale do Ave e do Sousa) e as reflexões — quando não ameaças — dos púlpitos dominicais. E, mui cívicos, grafaram a cruz, no boletim entregue lá na Junta de Freguesia, com que abjuraram os homicidas de crianças lindas, altas e loiras, certamente; renegaram pelo voto os lacaios de Lúcifer disfarçados por gravatas rosa, coloração pueril que não logra suavizar esses assassinos de uma nova geração de génios em potência, e dedicaram-se, na sua certeza irredutível e muito cristã, a conversas bastante mais substantivas do que a vida e a morte de fetos indefesos e de mães infelizes.


Ele, veterano das andanças ferroviárias quase do tempo do carvão, após mirar de soslaio o pasquim "Metro", manuseado por desfastio pelas vagas de passageiros precedentes.


— Eu, peixe, gosto de sardinhas, mas só se me apetecer!


declarou no despropósito aparente, mas garantindo continuidade à conversa que já viria de S. Bento, interrompida pela curiosidade de avalista que mede, de alto a baixo, cada novo intruso na composição ferroviária provisoriamente acantonada em Campanhã


— Ai eu também.


asseverou ela, solícita e solidária, após verificar e classificar a indumentária de uma rapariga muito novinha e de nívea pele, dando por insultuoso o redondo perfeito que sobrou do cordão umbilical e ali exposto, à vista de toda a gente, no epicentro de ancas salivares


— É que eu sei que tenho uma alimentação de merda.


volveu ele, cuidando ser novidade o que o fácies macilento, o cabelo baço e ralo e a arcada depauperada tornavam evidente aos ignaros da macrobiótica


— Pois eu faço questão de fazer três refeições, embora hajam (sic) dias em que não dá… Mas, desde que eu tome o pequeno-almoço e coma uma peça de fruta para o estômago não ficar vazio, já fico bem até à noite.


garantiu ela, com certa solenidade doutoral, ajeitando os óculos de leitura no parietal riscado por madeixas acentuadíssimas, como se um biscateiro da trincha houvesse empreendido a suprema vingança pelo pecado da vaidade


— Eu, de manhã, não sou muito de pão nem coisas assim…


tornou o homem, após breve silêncio


— Ai, já eu é cereais! Como montes deles! Até porque aquilo regula-me os intestinos.


assegurou a interlocutora, com uma felicidade algo estranha ao teor da conversação e cuja veracidade enfermava da correspondência com uma realidade bojuda que o cinto de cabedal, no limiar da tracção, não conseguia iludir


— Pois…


disse ele, pouco convencido, mirando os próprios sapatos, com gerações sucessivas de pomada negra, que acusam o desgaste das solas de borracha, a fazerem beicinho na costura lassa, amuadas por tão longa comissão de serviço


— E tenho de jantar. Pode até nem me apetecer, mas se me deitar com o estômago vazio…


continua a senhora, deixando subentendido um drama nocturno qualquer, cuja frequência é notória nas olheiras pronunciadas pela iluminação vertical do comboio


— Eu, de manhã, o meu pequeno-almoço é sempre dois iogurtes, mas por volta das onze e meia já tenho de comer.


retoma ele, reencaminhando o colóquio para terreno mais pacífico, que não redunde em confissões escabrosas de uma vida conjugal à deriva


— Eu sou tão despassarada que hoje de manhã tinha lá canja para o almoço e até me esqueci de trazer...


a cabeça dela, meu Deus, que já se afigura tão pouco recomendável por fora…


— Mas a sopa faz muito bem.


diz o homem, recuperando a lição ancestral que todos os petizes decoram logo nas primeiras experiências de alimentação sólida e sonoro bofetão que abre a boca mais renitente


— Eu tomei o pequeno-almoço, não posso mas comi, e depois ao almoço comi uma maçã, e agora a meio da tarde nem tive tempo de comer nada, por isso vou ter que grelhar qualquer coisinha...


diz ela, salivando costoletas com três dedos de altura e posta mirandesa acolitada por umas batatinhas a murro, por certo


— Eu vou cheio de fome, porque não trouxe farnel e não vou ao café armar-me em herói e pagar praí dois euros ou mais por uma sandes (sic) e um fino. Mas quem anda por cá o dia todo, tem uma alimentação de merda. Eu agora chego a casa e como de caraças.


disse ele, com o "caraças" alojado no abdómen rotundo no espaço que sobrou dos finos


— Olha, por falar nisso, já cá estou.


alerta a senhora, depois de prolongado silêncio, escusando-se a comentar o "caraças" do outro. Mira ainda o rosto, na vidraça espelhada pelo breu das nuvens sem lua, redondo e rubicundo pelo excesso de corantes, e levanta a custo o corpo anafado, na largueza de cintura que a escassez do casaco de ganga mais acentua


— Já viste que o "sim" ganhou?


atirou ainda ele, acenando o paliativo impresso e amarrotado pela impaciência da ileteracia suburbana à outra que já pousa o pé nos estribos da carruagem


— Não, nem sequer fui votar. Tive gente lá em casa, uma almoçarada em família.


demora-se ainda a senhora, o corpo todo já fora do comboio amarelo em descanso


— Pois… Eu também não fui.


confessa ele, algo amargurado pela falta cometida


— Deixa lá, que importa? São sempre os mesmos…


atira ainda a outra, numa última sentença antes de sair de cena em Águas Santas, eventualmente baralhada com os propósitos do sufrágio que ignorou


— Pois…


resigna-se ele, ajeitando a gravata azul marinho riscada por listas celestes, antes de recomeçar a percutir o pé impaciente até à derradeira estação em Travagem, folheando ainda o "Metro" sem que foto nenhuma ou título algum logrem distrai-lo da culpabilidade que o assalta, cônscio, afinal, de ter uma alimentação de merda.


Post Scriptum: No país inteiro, foram às urnas 3851613 eleitores (43.60% dos convocados), que decidiram concordar com a despenalização da prática do aborto “ nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Em Águas Santas, Maia, 67.23% dos 9405 votantes optaram pela despenalização, e 10309 ficaram em casa, numa eventual almoçarada em família. Em Ermesinde, a que pertence o lugar de Travagem, 14596 inscritos votaram, com 63.81% a grafarem “sim”. 18406 optaram por considerações mais importantes em torno das virtudes da sardinha para resgatar os infelizes de uma alimentação merdosa. Com êxito manifestamente duvidoso, já agora. Em Guimarães, terra minhota onde se reclama, em letras monumentais afixadas no centro da cidade, “Aqui nasceu Portugal”, pela lógica do lugar as questões abortivas não colhem: o “Não” foi a opção mais votada, com 31913 (52.29%) de eleitores a recusarem a despenalização do aborto.