22 de março de 2007

Despojos de um Freak Imperial


O derradeiro comboio para Guimarães seguiu ontem particularmente vazio de almas. Se poucas eram quando partiu da Estação de S. Bento, também ela varrida pela fria desolação dos lugares inabitados, poucas mais seriam ao deixar Campanhã. E, dali em diante, o declínio numérico foi tão consistente como a evolução do orçamento estatal — de erro em engano, até à ruína total.

Não chegou, contudo, à nulidade absoluta proposta implicitamente por um dos passageiros nocturnos. Excepto pela sua evidência material que o bilhete cauciona, à semelhança de um recibo pelo aluguer provisório de um canto na carruagem, nada nele sugeria uma essência para lá da forma, uma centelha espiritual alumiando a pura orgânica. Uma alma, enfim, que pudesse habitar aquela mudez intransigente, arrancar aquele corpo da quietude obstinada do rigor mortis, como um cadáver que logra o milagre de respirar sem dar por isso. Um vulto de tal forma inóquo que se tornou excepcional.

Não se tratava de mais um desses utentes de quotidiana frequência que, no termo do expediente laboral, vencido como a expiação do pecado de nascer sem a bênção do apelido, título ou fortuna, procuram o descanso num sono forçado; não pertence a essa estirpe incongruente que ressona fantasmas e fantasias entre o sobressalto de cada apeadeiro até acordar no destino. Não, não é desses inglórios garimpeiros, não se confunde com eles.

Porque o seu tormento, ainda que infinitamente maior, é também a sua defesa, quiçá a única que lhe resta; a sua garantia de sobrevivência ao vácuo que vai enchendo a carruagem é a renuncia. A ele próprio. E aos outros. Ao Mundo.

A sua quietude pétrea, configurando o simulacro carnal do metalino pensador gerado por Rodin, implora pela indiferença alheia. O apelo contido na letargia aparente dos sentidos prolonga-se pela roupagem anódina, sem corte nem cor dignos de reparo. Obrigado a estar, recusa-se a ser, no paradoxo de uma passividade actuante em prol do seu desaparecimento.

Dir-se-ia um falhado enquanto indivíduo, um despojo orgânico da venalidade e da usura que hoje campeiam livres, senão aclamadas; um espectro passeando a contragosto pela via-férrea na mais profunda solidão e abandono. Uma negação, apenas.

Pelo menos, é isso que conclui o outro passageiro sobrante no comboio amarelo (os funcionários não contam, por serem meras peças do mecanismo de transporte, nem as duas atletas brasileiras da equipa de voleibol feminino da Trofa, por nelas e para elas tudo ser corpo…). O observador resistente à debandada gradual intui, no silêncio do ocasional companheiro de viagem, o desamparo extremo; não vislumbra na treva do rosto esfíngico qualquer presença no termo da jornada, nenhum regaço, nenhum calor. Ninguém à espera.

E cogita o resistente se não será o figurante de um estranho ritual fúnebre, em que participa por funesto engano, reconhecendo na melancolia agónica do outro, no mutismo intransigente do outro, na ausência de um olhar, sequer, do outro, um daqueles homens que, sem a expectativa positiva no que há-de vir (seja o progresso rutilante da Ciência, seja um Messias andrajoso mas redentor) morrem duas vezes. Prosseguem sustentados por um ventilador oculto até que sobrevenha a finitude irreversível com o desmoronar do tronco cerebral, e é tudo.

Mas o passageiro que, na sua ilusão arrogante de superioridade moral e conforto social, começa a desenvolver certa compaixão pelo homem tornado cinza no brando crematório das consumições da vida, experimenta tremendo cagaço quando, subitamente, o objecto da sua piedosa comiseração — e descarada espionagem — abre um olho, um olho apenas, e finca nele a retina. Num movimento fugaz. Um arrepio de lume no borralho batido por uma aragem furtiva.

Na brevidade violentíssima desse contacto perverso, que o escava até ao âmago, o passageiro petulante compreende o equívoco das suas elaborações. Recorda a frase, sobejamente citada, da fotógrafa Diane Arbus quando resumia a sua paixão pelos freaks, essas personagens inquietantes por tão estranhas aos padrões da normalidade: "A maior parte das pessoas atravessam a vida receando ter uma experiência traumática. Os freaks já nasceram com o seu trauma. Já passaram o seu teste na vida. São aristocratas".

Aquele olhar não pretendeu senão isso: estabelecer definitivamente as diferenças abissais entre ele, que jaz por querer, mudo por querer, e os demais mortais, plebe rancorosa e vil que procura fugir do desamor. Nada é comparada com ele. No alto da sua recusa majestática da sociabilidade humana, é ele quem detém o poder, porque não carecendo de ser notado, também não lhe interessa notar. Só existe quem ele autorizar. Porque, como escreveu o poeta Ruy Belo, somos seres olhados, existindo apenas no olhar dos outros.

Quando desceu no apeadeiro de Covas, o passageiro pretensioso ia já arrependido de ter sido agraciado por aquele olhar que lhe devolveu a dependência e pequenez de um suburbano remediado.

2 de março de 2007

Tragicomédia Entre Apeadeiros + Duas Estações - I


Há precisamente quinze dias, um dos maiores mitos contemporâneos da ferrovia suburbana regressou ao convívio dos mortais que frequentam a linha Porto-Guimarães. Suspeita-se que, no Seu enfado infinito, Deus tenha inventado castigo assaz elaborado para a terrível e amarga revisora que, nessa sexta-feira aziaga, configurou uma espécie de Prometeu agrilhoado — mas sem chama inteligente nem irreverência altruísta. A senhora terá sido, presume-se, condenada não só à convivência com os desprezíveis passageiros, mas também a padecimentos vários e renovados ao longo da viagem prenhe de atribulações. Uma tragicomédia ambulante aos solavancos. Por dois euros.


O regresso da revisora estava, aliás, fadado ao desconchavo. Os sinais estavam ali, desde logo inscritos no fardamento extemporâneo dela, naquele uniforme branco de têxtil leve, susceptível de suavizar as mordidas estivais ainda tão longínquas, porém, no calendário da hibernação solar e dessa chuva abundante que tem riscado as vidraças da carruagem. Outro indício ocorreu com a falência da tecnologia substituta das velhas bilheteiras, aqueles cubículos forrados a bolor, horários gastos e cartazes rompidos que garantiam emprego aos funcionários indigentes e desaustinados de outrora (os actuais continuam indigentes, mas sorriem muito mais!).


A maquinaria enxertada na gare de S. Bento decidiu, numa manobra concertada, congelar todas as funções. Grevista zelosa, porém, assegurou os serviços mínimos através de um engenho apenas que, em breve, se revelou incapaz de corresponder à demanda gerada pelo acréscimo de passageiros aos fins-de-semana. Os anónimos rostos enfileirados entretanto, comungando o espanto e certo desespero positivista pela falência da mecânica, dissuadiram os mais relapsos. E aqueles, confiando na razoabilidade do argumento evidente, entraram na composição, esperando beneficiar de um serviço personalizado que fornecesse bilhete e, quiçá, desculpa pelo incómodo.


Debalde; pois se é sabido que as fardas usam anular os resquícios de humanidade, no caso da mítica revisora é lícito indagar se não terá nascido, num dia que orça para lá de meia centúria, já de farda posta… Ora, esses passageiros mais atrasados, se além de pontuais tivessem sido previdentes e consultado os anais daquele ramal, veriam que a senhora figura no imaginário colectivo precisamente pela insensibilidade asinina demonstrada amiúde, à qual deveu, aliás, a sua longa ausência. Por baixa. E por decreto da justiça popular.


Diga-se que a personagem, que terá sido recambiada da famigerada Linha de Sintra por exigência dos utentes cansados de tanta petulância aristocrática, segundo um passageiro de Ermesinde bem informado, já não despertava simpatia alguma. A repulsa devia-se aos exageros plásticos exibidos, cujas ressonâncias operáticas baralham, de algum modo, os sinais identitários do operariado que enche o comboio amarelo, violentando a consciência de classe dos passageiros. Pois que ela, embora operária também, ao contrário dos seus pares — que acalentam enfermidades menores para garantia de reforma antecipada e ostentam um mau gosto propagandístico no vestir, reclamando pelo custo de vida que o Governo jura nunca ter sido melhor —, demonstra profundo desprezo pelos brios e atavios do lumpen de onde saiu.


Tal revisora renega o paradigma original com a vasta cabeleira oxigenada, no figurino das idosas que buscam a fórmula da eternidade nas revistas de mundanidades; esgota boiões de estranha goma, rotulados por receitas ilegíveis anunciando a Terra do Nunca, para encher os regatos fundos do rosto que suplica a firmeza do botox; ostenta brincos de polímeros sintéticos sugerindo pérolas, enfeita de zircão os dedos longos, cuja cútis indemne os presume formatados para diamantes, safiras e rubis.


No cúmulo da desfaçatez, equilibra no limite nasal o derradeiro adereço que estabelece o abismo entre ela e o operariado viajante: os óculos graduados, cujo aro, dourado e minúsculo como o dos poetas, acciona o efeito simbólico que os outros tomam por ofensivo — acentua, por um lado, a sombra colorida nas pálpebras orladas por longas pestanas rímel; reivindica, por outro, uma difusa propensão intelectual alheia aos hábitos da malta que usa circular por ali.


Ora, a tais atributos algo vexatórios acresce o mau feitio permanente. É notória a falta de paciência para o semelhante em trânsito e que, não raro, recai sobre o povo mais idoso e menos educado nos benefícios da burocracia tecnológica da CP. É justo, porém, reconhecer-lhe a feição democrática, apesar de maniqueísta, na transversalidade da inclemência e brutalidade autoritária com que interpela os utentes. Para ela, todos são potenciais burlões e presumíveis borlistas. Sem direito a defesa nem indulto.


Na sua sanha persecutória, empreendida com o dogmatismo dos cruzados aos faltosos que não lhe merecem qualquer comiseração, nem sequer os pecadores cuja inimputabilidade é óbvia, a revisora averbou bastas multas e vastos ódios — a assinatura mensal está pouco legível? Multa de 50 euros; o bilhete foi tirado com o destino errado, ainda que sem prejuízo para a CP? Multa de 50 euros; as bilheteiras mecânicas não funcionam? Multa de 50 euros …e por aí fora, num extenso rosário de penalidades.


Mas, como não há mal que sempre dure, certo dia a revisora deparou com um casal de provecta idade, entrado em Caniços com destino ao Porto. Para exames clínicos, segundo fontes conhecedoras. Tratando-se de um apeadeiro, ambos poderiam solicitar o bilhete dentro do comboio amarelo e, dada a condição de reformados, evidente na locomoção custosa, no cabelo ralo e quebrado (embora penteado com desvelo), nos rostos tricotados e na pele manchada, pagar apenas metade do custo tabelado.


A revisora, porém, imbuída dessa ortodoxia que prenuncia a neurose, seguiu as regras, indiferente ao sorriso acolhedor do casal:


— Mostrem-me o cartão de aposentado ou o bilhete de identidade — reclamou, com secura desusada e reminiscências ditatoriais.


— Desculpe, mas é a primeira vez que nos pedem os documentos. Há algum problema? — indagou o homem, algo atónito pela rispidez da revisora.


Que retorquiu, ainda mais bruta, com a voz em brasa e uma indiferença ostensiva:


— Problema só se for o seu, que vai ter de pagar o bilhete inteiro ou sair do comboio.


Por força do hábito e do costume entranhados no país rural, tão afeiçoado ao plantio do Cerejeira e do Oliveira que vicejou por décadas, o velhote, embora abalado, acatou a réplica humilhante, e começou, até, a garimpar no bolso as moedas em falta. Sucede, porém, que na melhor tradição da resistência feminina à tirania prepotente, já a esposa, revigorada pela indignação que derrotou castelhanos em Aljubarrota e vincou a força popular nas ventas barbadas de Maria da Fonte, agarrava a farta juba da revisora, que arrastou pela coxia. A massa exultou com o episódio que envolveu a Polícia e tratamento clínico ao olho esgaçado da revisora, aconselhada a repouso total e caldos de galinha.


Vã terapia, como se provou nessa sexta-feira de má sorte.


(continua)