O derradeiro comboio para Guimarães seguiu ontem particularmente vazio de almas. Se poucas eram quando partiu da Estação de S. Bento, também ela varrida pela fria desolação dos lugares inabitados, poucas mais seriam ao deixar Campanhã. E, dali em diante, o declínio numérico foi tão consistente como a evolução do orçamento estatal — de erro em engano, até à ruína total.
Não chegou, contudo, à nulidade absoluta proposta implicitamente por um dos passageiros nocturnos. Excepto pela sua evidência material que o bilhete cauciona, à semelhança de um recibo pelo aluguer provisório de um canto na carruagem, nada nele sugeria uma essência para lá da forma, uma centelha espiritual alumiando a pura orgânica. Uma alma, enfim, que pudesse habitar aquela mudez intransigente, arrancar aquele corpo da quietude obstinada do rigor mortis, como um cadáver que logra o milagre de respirar sem dar por isso. Um vulto de tal forma inóquo que se tornou excepcional.
Não se tratava de mais um desses utentes de quotidiana frequência que, no termo do expediente laboral, vencido como a expiação do pecado de nascer sem a bênção do apelido, título ou fortuna, procuram o descanso num sono forçado; não pertence a essa estirpe incongruente que ressona fantasmas e fantasias entre o sobressalto de cada apeadeiro até acordar no destino. Não, não é desses inglórios garimpeiros, não se confunde com eles.
Porque o seu tormento, ainda que infinitamente maior, é também a sua defesa, quiçá a única que lhe resta; a sua garantia de sobrevivência ao vácuo que vai enchendo a carruagem é a renuncia. A ele próprio. E aos outros. Ao Mundo.
A sua quietude pétrea, configurando o simulacro carnal do metalino pensador gerado por Rodin, implora pela indiferença alheia. O apelo contido na letargia aparente dos sentidos prolonga-se pela roupagem anódina, sem corte nem cor dignos de reparo. Obrigado a estar, recusa-se a ser, no paradoxo de uma passividade actuante em prol do seu desaparecimento.
Dir-se-ia um falhado enquanto indivíduo, um despojo orgânico da venalidade e da usura que hoje campeiam livres, senão aclamadas; um espectro passeando a contragosto pela via-férrea na mais profunda solidão e abandono. Uma negação, apenas.
Pelo menos, é isso que conclui o outro passageiro sobrante no comboio amarelo (os funcionários não contam, por serem meras peças do mecanismo de transporte, nem as duas atletas brasileiras da equipa de voleibol feminino da Trofa, por nelas e para elas tudo ser corpo…). O observador resistente à debandada gradual intui, no silêncio do ocasional companheiro de viagem, o desamparo extremo; não vislumbra na treva do rosto esfíngico qualquer presença no termo da jornada, nenhum regaço, nenhum calor. Ninguém à espera.
E cogita o resistente se não será o figurante de um estranho ritual fúnebre, em que participa por funesto engano, reconhecendo na melancolia agónica do outro, no mutismo intransigente do outro, na ausência de um olhar, sequer, do outro, um daqueles homens que, sem a expectativa positiva no que há-de vir (seja o progresso rutilante da Ciência, seja um Messias andrajoso mas redentor) morrem duas vezes. Prosseguem sustentados por um ventilador oculto até que sobrevenha a finitude irreversível com o desmoronar do tronco cerebral, e é tudo.
Mas o passageiro que, na sua ilusão arrogante de superioridade moral e conforto social, começa a desenvolver certa compaixão pelo homem tornado cinza no brando crematório das consumições da vida, experimenta tremendo cagaço quando, subitamente, o objecto da sua piedosa comiseração — e descarada espionagem — abre um olho, um olho apenas, e finca nele a retina. Num movimento fugaz. Um arrepio de lume no borralho batido por uma aragem furtiva.
Na brevidade violentíssima desse contacto perverso, que o escava até ao âmago, o passageiro petulante compreende o equívoco das suas elaborações. Recorda a frase, sobejamente citada, da fotógrafa Diane Arbus quando resumia a sua paixão pelos freaks, essas personagens inquietantes por tão estranhas aos padrões da normalidade: "A maior parte das pessoas atravessam a vida receando ter uma experiência traumática. Os freaks já nasceram com o seu trauma. Já passaram o seu teste na vida. São aristocratas".
Aquele olhar não pretendeu senão isso: estabelecer definitivamente as diferenças abissais entre ele, que jaz por querer, mudo por querer, e os demais mortais, plebe rancorosa e vil que procura fugir do desamor. Nada é comparada com ele. No alto da sua recusa majestática da sociabilidade humana, é ele quem detém o poder, porque não carecendo de ser notado, também não lhe interessa notar. Só existe quem ele autorizar. Porque, como escreveu o poeta Ruy Belo, somos seres olhados, existindo apenas no olhar dos outros.
Quando desceu no apeadeiro de Covas, o passageiro pretensioso ia já arrependido de ter sido agraciado por aquele olhar que lhe devolveu a dependência e pequenez de um suburbano remediado.
Não chegou, contudo, à nulidade absoluta proposta implicitamente por um dos passageiros nocturnos. Excepto pela sua evidência material que o bilhete cauciona, à semelhança de um recibo pelo aluguer provisório de um canto na carruagem, nada nele sugeria uma essência para lá da forma, uma centelha espiritual alumiando a pura orgânica. Uma alma, enfim, que pudesse habitar aquela mudez intransigente, arrancar aquele corpo da quietude obstinada do rigor mortis, como um cadáver que logra o milagre de respirar sem dar por isso. Um vulto de tal forma inóquo que se tornou excepcional.
Não se tratava de mais um desses utentes de quotidiana frequência que, no termo do expediente laboral, vencido como a expiação do pecado de nascer sem a bênção do apelido, título ou fortuna, procuram o descanso num sono forçado; não pertence a essa estirpe incongruente que ressona fantasmas e fantasias entre o sobressalto de cada apeadeiro até acordar no destino. Não, não é desses inglórios garimpeiros, não se confunde com eles.
Porque o seu tormento, ainda que infinitamente maior, é também a sua defesa, quiçá a única que lhe resta; a sua garantia de sobrevivência ao vácuo que vai enchendo a carruagem é a renuncia. A ele próprio. E aos outros. Ao Mundo.
A sua quietude pétrea, configurando o simulacro carnal do metalino pensador gerado por Rodin, implora pela indiferença alheia. O apelo contido na letargia aparente dos sentidos prolonga-se pela roupagem anódina, sem corte nem cor dignos de reparo. Obrigado a estar, recusa-se a ser, no paradoxo de uma passividade actuante em prol do seu desaparecimento.
Dir-se-ia um falhado enquanto indivíduo, um despojo orgânico da venalidade e da usura que hoje campeiam livres, senão aclamadas; um espectro passeando a contragosto pela via-férrea na mais profunda solidão e abandono. Uma negação, apenas.
Pelo menos, é isso que conclui o outro passageiro sobrante no comboio amarelo (os funcionários não contam, por serem meras peças do mecanismo de transporte, nem as duas atletas brasileiras da equipa de voleibol feminino da Trofa, por nelas e para elas tudo ser corpo…). O observador resistente à debandada gradual intui, no silêncio do ocasional companheiro de viagem, o desamparo extremo; não vislumbra na treva do rosto esfíngico qualquer presença no termo da jornada, nenhum regaço, nenhum calor. Ninguém à espera.
E cogita o resistente se não será o figurante de um estranho ritual fúnebre, em que participa por funesto engano, reconhecendo na melancolia agónica do outro, no mutismo intransigente do outro, na ausência de um olhar, sequer, do outro, um daqueles homens que, sem a expectativa positiva no que há-de vir (seja o progresso rutilante da Ciência, seja um Messias andrajoso mas redentor) morrem duas vezes. Prosseguem sustentados por um ventilador oculto até que sobrevenha a finitude irreversível com o desmoronar do tronco cerebral, e é tudo.
Mas o passageiro que, na sua ilusão arrogante de superioridade moral e conforto social, começa a desenvolver certa compaixão pelo homem tornado cinza no brando crematório das consumições da vida, experimenta tremendo cagaço quando, subitamente, o objecto da sua piedosa comiseração — e descarada espionagem — abre um olho, um olho apenas, e finca nele a retina. Num movimento fugaz. Um arrepio de lume no borralho batido por uma aragem furtiva.
Na brevidade violentíssima desse contacto perverso, que o escava até ao âmago, o passageiro petulante compreende o equívoco das suas elaborações. Recorda a frase, sobejamente citada, da fotógrafa Diane Arbus quando resumia a sua paixão pelos freaks, essas personagens inquietantes por tão estranhas aos padrões da normalidade: "A maior parte das pessoas atravessam a vida receando ter uma experiência traumática. Os freaks já nasceram com o seu trauma. Já passaram o seu teste na vida. São aristocratas".
Aquele olhar não pretendeu senão isso: estabelecer definitivamente as diferenças abissais entre ele, que jaz por querer, mudo por querer, e os demais mortais, plebe rancorosa e vil que procura fugir do desamor. Nada é comparada com ele. No alto da sua recusa majestática da sociabilidade humana, é ele quem detém o poder, porque não carecendo de ser notado, também não lhe interessa notar. Só existe quem ele autorizar. Porque, como escreveu o poeta Ruy Belo, somos seres olhados, existindo apenas no olhar dos outros.
Quando desceu no apeadeiro de Covas, o passageiro pretensioso ia já arrependido de ter sido agraciado por aquele olhar que lhe devolveu a dependência e pequenez de um suburbano remediado.