13 de junho de 2007

Homicídio Colectivo no Apeadeiro de Rio Tinto


Não foi notícia. Em lado algum.

Nem sequer nos pasquins especialistas na exposição de cadáveres ulcerados pelos marginais em desespero. Esses infelizes que são tão miseráveis, afinal, como a casta dos jornalistas amanuenses que, presos ao teclado, ligados aos computadores para benefício dos dividendos bolsistas, parecem escribas em sessões esclavagistas de hemodiálise. Só que, em vez da insuficiência renal, padecem do assédio laboral autorizado pela cartilha do neoliberalismo em ascensão.

De modo que agravam dioptrias, os sicários da escrita emboscados nas redacções, para vender papel reciclado cheio de receitas sushi e gadgets tão fashion quanto inúteis… Como os jornais eles próprios, despovoados de interrogações e perplexidade. Papel niilista e amoral polvilhado de cosmética gráfica e brindes promocionais sem préstimo. Um nojo acéfalo com lantejoulas. Como as putas finas e os concursos da TVI.

Não espanta, por isso, que até esses matutinos, que titulam necrologia pornográfica para acalentar a ilusão de bondade e decência às velhas pensionistas e aos desempregados, tenham ignorado a ocorrência. Nada reportaram. Nem uma linha. Da rádio, afonia total; na televisão, cegueira absoluta. Nada em lado nenhum. Como se nunca tivesse acontecido.

Mas aconteceu, numa manhã de sexta-feira, em Abril último. E foi terrível.

No apeadeiro de Rio Tinto, excrescência de Gondomar já por si macabra, houve um homicídio. Colectivo. Participado por quase todos os passageiros do comboio amarelo, em que cada qual, revelando a bestialidade do animal humano a bordo de uma carruagem saturada, matou mais um bocadinho a vítima. Com a mesma determinação dos algozes de César, mas sem aquela magnificência dramática com que Shakespeare reciclou o crime dos tribunos invejosos nos Idos de Março. Isso mudaria tudo. Assim como a marmórea escadaria senatorial em vez do betão cariado daquele abcesso gondomarense.

Se não romana, a tragédia poderia ser, até, grega — havia basto coro e espécimes gay, ansiosos por ensinar criancinhas, a bordo!... Mas não; embora latina, foi portuguesa. E suburbana. O que altera tudo. Para pior! Principalmente quando sobreveio a vingança que redundou no massacre furioso dos assassinos. Um banho de sangue! E, no entanto, nem uma gota verteu para o domínio público…



Visto à distância, o sinistro era previsível na atmosfera tensa do comboio amarelo, sobrelotado muito para lá do habitual, quando a enchente ocorre apenas em Ermesinde. Ora, nesse dia aziago, já se perfilavam viajantes apeados em Santo Tirso. E o rumor das múltiplas conversas, que usa evocar arrulho sereno e cordato, ocasionalmente perturbado pelo trino de uma gargalhada átona ou a melodia pimba de um telemóvel incontinente, derivou para o cacarejo doentio dos aviários industriais.

Para desespero de um poeta esforçado — cuja musa frigidíssima lhe negava rimas e versos desde que se lançara na empresa literária —, incapaz de se abstrair do contexto galináceo. Provavelmente, nem Pessoa o lograria, ainda que encharcado de absinto, caso tivesse por estreita companhia três enfermeiras histéricas exalando perfumes ofensivos de encomenda postal, ou duas universitárias, castas por obrigação, debatendo com denodado empenho o contributo da electrónica japonesa para o cálculo algorítmico.

Pobre poeta, já tão dorido pelo toque furtivo dos joelhos da morena divinal abancada no lugar da frente. Mulher estupenda, mas demasiado absorta na consulta de um guia turístico da República Dominicana — que sublinha amiúde, com uma sensualidade distraída, alheia à própria ideia de sedução —, para notar o calor tropical que arrepia os genitais do putativo artista. Ao qual sobeja refrigério após a morena desertar em São Romão, levando os joelhos perturbadores com ela — mais os lábios grossos, o peito redondo e a firmeza do cu…

Ficou o poeta boquiaberto, com a vista esbugalhada, presa à porta que lhe furtou notória alegria. Pobre bacalhau solitário e diminuído, à deriva num aquário de alforrecas estridulantes. "Puta que pariu!" — não tem sorte nenhuma, tal poeta submarino. Intransigente, não desiste: volve à escrita, oferecendo a alma e os órgãos moles à musa adúltera e remissiva com abnegação de forcado em noite de alternativa.

Sem êxito, porém, que a orbe da empiria daquele poeta malfadado, movido pela ambição de posteridade no ofício incerto das palavras, situa-se num universo em crise. Libidinal. E, da teimosia sem vocação lírica, resulta a oca meditação, o ajuste inglório da métrica com a raiva de um corno desenganado, batendo sílabas em brasa numa bigorna de fomes e rancores. Para evitar suicidar alguém…

De modo que o patético poeta, entrincheirado no comboio amarelo, persiste naquela espécie de grafomania terapêutica.

Prolixo em superlativos desnecessários e rimas inverosímeis, organiza estrofes com tremuras de virgem a caminho do tálamo, cheio de cuidados mil na selecção do verbo. Mas acaba por se perder, como é de seu costume, nas encruzilhadas da composição, naufragando na paralogia metafórica que hipoteca o nexo de versos rudimentares, prenhes de confessionalismo sórdido, misantropia e frustração adolescente. E apesar do estóico investimento, a poesia propriamente dita não há meio de acontecer…

Mas acontece uma outra espécie de horror. Sinalizado por um grito perfurante que lhe remete, com o susto, o ensaio de trovas para o intestino, enquanto abafa a fervura das conversas em ebulição. "Puta que pariu"! — balbucia o nervoso poeta.

Ao seu lado, uma das castas universitárias tem, na paralisia do rosto, uma expressão de pavor que humilharia Münch. E sacode a colega num frenesim de urgência, para que ela veja, para que assista. Para que testemunhe depois, enfim, o tenebroso episódio, quando o reportar na cantina da faculdade aos outros, aos madraços a que se insinua há tanto. Debalde — nenhum a repara como deseja, por altura da Queima das Fitas, numa degustação alarve, com temperos ilícitos e cerveja quente (o preservativo é opcional).

A excitação da parelha académica alastra, virulenta como o catarro nas homilias, pelas carruagens atestadas. Num ápice, os passageiros contaminados precipitam-se para as janelas da composição. Numa delas, a vidraça espelha o semblante, contraído pela ruminância de impropérios e fúrias, do poeta de má sorte. Com tendência para piorar a desdita.

A primeira vaga de curiosos, que da coxia se debruça sobre os bancos num assalto mórbido, esmaga-lhe os joanetes; a segunda, levantada dos assentos num tropel, precipita-se com avidez sobre a primeira e empurra três matronas. Desamparadas, abatem-se sobre o pobre poeta.

— Puta que pariu as velhas! — rosna ele, impotente, comprimido por halitoses e adiposidades, soterrado nos escombros de sonetos e redondilhas, espumando oximoros e metonímias. E, tomando por genuína a dor que era suposto apenas fingir, escapa-lhe o fulano que, estirado no cais de Rio Tinto, congrega as atenções do povo.

É velho, o infeliz: tem o crânio varrido por severa tonsura, o rosto lavrado pelas térmitas que parasitam os dias gastos… Jaz aos pés dos rapazinhos fardados que, embora se reclamem "sempre alertas", dado o tráfego matinal de glândulas mamárias naquele apeadeiro, só deram por ele já caído. Amortalhado por uma gabardina beige, extemporânea e com mais nódoas que botões, o indivíduo tombou sem alarde nem aflição. Desabou assim, discreto como os humildes, que solicitam o perdão póstumo aos carrascos em falsas notas de suicídio altruísta.

Os jovens despegaram finalmente dos mamilos primaveris desenhados em camisolas de Lycra e cumpriram os preceitos do escutismo, colocando o homem em posição lateral de segurança. E, enquanto um deles convocava socorro capaz pelo telemóvel, na carruagem troou uma voz poderosa, cujo timbre a deu por acostumada ao comando.

— Anda por aqui algum médico? — indagou, autoritário, o sujeito maciço que trazia nas pupilas, ainda, o deslumbramento solar da África colonial e, na tremura das mãos largas, os mil horrores do capim ultramarino. O silêncio devolveu-o à suja realidade suburbana, à qual nenhum curandeiro sujeitaria a nívea majestade da sua bata.

O mutismo geral prolongou-se pelo trio de enfermeiras, absorto no espectáculo e esquecido do ofício que, de qualquer modo, jamais exerceria com gratuita piedade cristã. Por temer represálias da Ordem e do Sindicato, corporações reconhecidamente laicas.

Do âmago daquela massa compacta grudada nas janelas, emerge outra voz. Também máscula, mas nasalada e canalha. Velhaca, até. Como a dos campeões da sueca que, pelos feriados e dias santos, averbam bicicletas e torradeiras nos torneios das associações recreativas e culturais lá da freguesia. Grémios que, tão escassos de subsídios como de imaginação, esgotam funções na sorte do baralho.

— O melhor é arranjar cangalheiro para o gajo…

A sugestão verbaliza as suspeitas da maioria, cada vez mais convicta do colapso fatal do homem derrubado. Muitos, no lodo dos seus íntimos, desejariam até assistir ao último estertor, lamentando apenas a discrição do putativo defunto nesse derradeiro gesto, que a televisão torna sempre tão emotivo e brilhante. Ali, a realidade é muito mais aborrecida. E baça.

No exterior do comboio, assoma aos lábios do sujeito inanimado um ponto vermelho. Uma bolinha apenas, quase imperceptível que, dali a nada, já mais volumosa, se liquefaz, riscando-lhe o papiro do rosto. Notando o rubro traço de hemoglobina, uma jovem de nórdica compleição — pernas fortes, seios largos e loiro genuíno — leva as mãos à boca fina para reprimir o grito que se escapa:

— Ai, coitadinho, que ele morre mesmo!

São tão dramáticas, as loiras…; mas, piores do que elas, são as morenas suburbanas, cujo sonho é a madeixa definitiva, copiada com zelo excessivo.

— Aquilo é como o meu cunhado, quando se lh’arrebentou o câncaro nos pulmões. Vertia sangue que nunca mais parava. Saía às postas, parecia que ia ficar todo escoado… Pois não aguentou uma semana no hospital! E ainda bem que Deus o levou, que ele já só gritava noite e dia, moído pelas dores, que as injecções já não lhe pegavam nem faziam nada.

Baixinha e anafada, a falsa loira cativa as atenções. Jubilosa, entesa o corpo, curto e largo, moldado pelo espartilho do avental florido que só tira no passeio à cidade, e projecta a noz do queixo para se fazer medrar no seio da multidão. Estica a perna grossa, que se imagina enxertada em pantufas de felpo, encardido como as espáduas de cavalos cor-de-rosa que ninguém escova nem lava, e conclui o relato do calvário familiar.

— A minha irmã foi uma santa para ele, mas, p’ró fim, já não podia mais com aquilo, e estava a dar em maluca.

A suposta canonização da viúva, plenamente justificada no seu alívio, liberta uma enxurrada de episódios sanguinolentos e cenas escabrosas na memória vivíssima, fértil de pormenores, das falsas loiras empenhadas em sê-lo que seguem a bordo. Disputam o tumor mais maligno e fulminante, a complexidade de múltiplas cirurgias sofridas por familiares ou amigos, quando não elas próprias; evocam moléstias, pestes e bastas pandemias, reabrem úlceras e sugerem tromboses, esgrimem fármacos e mezinhas, prescrevem drogas e tisanas, e acabam por sepultar multidões inteiras nesse concurso do funesto a que se entregam com paixão de coveiro.

O debate convoca a maioria dos passageiros daquele comboio matinal, ainda amarelo, mas reconvertido numa assembleia de parlamentares necrófilos. O entusiasmo é tal que logo esquecem a causa das suas queixas e especulações. E ninguém escuta uma das enfermeiras que avança o diagnóstico possível e mais provável:

— Deve ser epiléptico, o homem. Trincou a língua.

As duas colegas anuíram, regressando ao encosto dos assentos.

— Pela quantidade de sangue que deitou, vai precisar de ser cosido… — alvitra uma delas. As outras concordam.

Retoma o curso o comboio, deixando para trás os escuteiros e o homem que logrou, na mole de suburbanos excitados e algo tontos pelas oscilações da composição, uma singular unanimidade quanto ao seu destino:

— Morreu, ouçam o que vos digo, está morto. De certeza! Já não bule — garante uma senhora, baixinha e muito seca de carnes, com perfil de periquito. O seu aprumo esforçado, que se articula em rendas e bordados, o alinho do cabelo alvidúlcido e a falta de argola no anelar dão-na por solteira antiquíssima.

Embora educada e serena, adivinha-se nela a fome imensa por nacos de conversa fútil e sexo bruto na cama de dossel onde dorme sozinha; presume-se nela a companhia — em três assoalhadas impolutas, povoadas por objectos decorativos que sublimam os excessos do barroco e cheias de fotografias desmaiadas, em molduras de purpurina, dos antepassados doravante sem descendentes — de um gato, prisioneiro e quase cego pela idade.

— Foi um ataque fulminante! — adianta a estudante que cultiva as etiquetas na roupa e os adereços no corpo. Espeta motivos tribais de metal no nariz, no sobrolho e no lábio inferior; além das orelhas, cujo lóbulo distendido acusa a sobrecarga de adornos.

— Um tumor, um tumor — insiste a falsa loira, especialista em questões oncológicas por via da irmã beatificada (entretanto casada de novo com um retornado que a mói de pancada).

— Ná, magro como estava, pior que um cão vadio, se calhar era tuberculoso. Vinha no outro dia no jornal que o Porto é onde há mais casos no país todo…

— A culpa é do Governo, que está cheio de comedores e anda p’raí a fechar hospitais a torto e a direito, para os privados terem clientela. E quem não tiver dinheiro que se lixe.

Entre o aquecimento global e a guerra no Iraque, o repolho transgénico e os escândalos púbicos de Britney Spears, aquela assembleia não mais deixou, até Campanhã, de acrescentar causas para a morte que tinha por garantida em Rio Tinto. Cada qual foi escolhendo, de entre as inúmeras modalidades de homicídio que a fragilidade humana autoriza, a mais conveniente ao exorcismo dos próprios fantasmas ou, tão somente, às exigências narrativas do auditório, ávido de desgraças alheias, na displicência do emprego, na lassidão do café ou no recato do lar. Um assassinato muito completo, o do pobre velho encardido, pleno de variantes e de primores que nenhum psicanalista ambicioso, nem qualquer verdugo diligente, desdenharia estudar.

Muito menos o poeta de má fortuna e parca vocação que se arrasta, tão amarrotado como as suas estrofes, aturdido e raivoso, para fora do comboio amarelo pousado no cais n.º 2 de Campanhã. Ao rol de sevícias que os passageiros foram compilando na sua alegre troca de impressões, acrescenta umas quantas torturas e maleitas, cancerígenas ou degenerativas, igualmente fatais e dolorosas.

Na escada rolante que desagua no edifício de azulejos azuis, identifica claramente os utentes hematófilos, e crava-lhes nas costas os olhos em alvo. Deles partem punhais imaginários, lâminas de fúria irracional que mondam escalpes a mulheres suburbanas — loiros quase todos —, esquartejam membros flácidos e adiposos a matriarcas de clãs operários, arrancam piercings e brincos às carnes firmes de jovens tatuadas, perfuram os úteros secos de virgens involuntárias e de velhas mirradas.

Caminha, o poeta genocida e inclemente, com o passo firme dos campeões, liberto de toda a gravidade, pela miragem de uma estação rubra de sangue fresco; a plataforma é um pantanal de cadáveres retalhados e moribundos em agonia, ignorados pelo trio de enfermeiras que, se não tivesse já sucumbido a mutilações várias, não ousaria desafiar as regras burocratas do seu mester.

Sorri, agora, o poeta, no êxtase da sua obra macabra, furtando o génio literário de Wilfred Owen à vista dos rapazinhos gaseados nas trincheiras onde sepultaram impérios; ébrio com semelhante êxito, descobre-se no alto da escadaria que desemboca no cais principal da estação a declamar, à semelhança de Nero face às chamas que devoram Roma, versos histriónicos em louvor do massacre.

E nisto é repreendido pelo negreiro de serviço pelo notório atraso à sessão de hemodiálise desse dia nefasto, em que um homem quase morria no apeadeiro de Rio Tinto e os jornais nada reportaram. Puta que os pariu.