21 de agosto de 2006

Doenças oculares


A primeira paragem do último comboio amarelo para Guimarães, seis minutos depois de partir da estação de S. Bento, no Porto, ocorre em Campanhã, esse vasto não-lugar saturado por gente de ansiedade cronometrada que as linhas distribuem para todo o lado, na urgência de arrumá-la. Na maior parte das vezes, trata-se de um processo ecológico, que descongestiona a paisagem de elementos perturbadores, vagamente antropomórficos, mas definitivamente horrendos (se bem que, embora muito raramente, também ouse furtar, à diletância cansada da vista poluída, produtos de formulação genética que seria útil clonar, em vez de ovelhas, ratos, e demais fauna sem préstimo…).

Naquela hora já algo tardia (21:51) para o funcionalismo suburbano, os passageiros que entram não compensam aqueles que saem, deixando ainda mais vazio o comboio amarelo. O que é óptimo para uma primeira abordagem ao sono – restaurando energias para suportar a maratona de novelas que sucede ao jantar, os lamentos das digníssimas esposas em pantufas surradas, as birras dos filhos tão caprichosos como as mães e as facturas do monopólio da electricidade –, ou para fruir de leituras mais densas. Sucede, porém, que nem todos se entregam a exercícios tão recomendáveis. Há aqueles que, desconfiados da própria Humanidade que partilham, persistem na sua vigília. Colam os olhos a terceiros e vigiam os outros. Dissecam-nos, analisam-nos e classificam-nos. Como objectos. São utentes solitários, geralmente invejosos, amargos e coleccionadores de inferências e conjecturas.

Aquela atitude analítica insistente torna-se razoável quando o comboio segue cheio. Com o espaço vital circunscrito à largura dos ombros – ou ao volume dos glúteos e à grossura das coxas -, os membros tolhidos pela compressão da massa embarcada, sem possibilidade de mexer outra coisa que não o nervo ocular, é quase natural forçar o movimento. Para afirmar a vida (parar é morrer). Ou por mera atitude lúdica. Como distracção neuronal. Olhar sem ver, apenas. Fora isso, é sintoma de uma qualquer descompensação patológica.

Sucede que, por vezes, o fluxo de olhares em trânsito inunda o comboio amarelo, ocupa todos os espaços vazios numa cacofonia de pupilas irrequietas, ansiosas, violadoras. No comboio amarelo, por demasiadas vezes, só viajam doentes que concorrem no trauma da exposição intrusiva.

1 comentário:

Leonor Paiva Watson disse...

"No comboio amarelo, por demasiadas vezes, só viajam doentes que concorrem no trauma da exposição intrusiva."

Muito bom, muito bom mesmo.

Sophia

P.S. Desculpa a classificação. LOL