24 de agosto de 2006

A besta de Darwin


No comboio terminal para Guimarães, ao respirar mecânico da composição amarela, ansiolítico e quase sedativo, sobrepõe-se quase sempre um silêncio monástico. Inspirado pelo breu nocturno, ratificado pela vacuidade dos lugares sem bilhete e alimentado pelo alheamento opiáceo dos esparsos viajantes, privados de companhia ou saturados dela. Essa espécie de recolhimento sem meditação não chega a ser perturbada pelos noviços, inopinados por tão raros, que procedem dos apeadeiros. Geralmente, entram naquele cenóbio ambulante com a muda reverência dos acólitos ou trazem o aspecto do refugiado que já só busca um pouco de paz. Sentam-se, adequam a vista à luz hospitalar das carruagens e volvem ao conforto do anonimato.

A semana passada, porém, o alarde de uma alegria furiosa eclipsou aquela placidez conventual. Uma família – pai, mãe e duas filhas ainda sem idade para militar na escolaridade obrigatória do 2.º Ciclo – entraram em Ermesinde, plataforma distributiva para os recônditos setentrionais, trazendo com ela o ruído de uma convivência doméstica disfuncional. A ocorrência, já de si excepcional, converteu-se rapidamente numa experiência antropológica singular, elucidativa das fragilidades que esburacam as teses darwinistas. Afinal, o elo entre os símios e o Homem não se perdeu – esse vil mamífero, díscolo e beligerante, existe. Está entre nós e frequenta comboios amarelos.

E, no entanto, a cena até sugeria certa redenção.

As meninas, algo franzinas e um pouco andrajosas, reflectindo uma felicidade pueril nas arcadas sujeitas à mutilação própria da idade, precedem o casal em saltinhos de contentamento, solicitando as atenções paternas em apelos constantes – ó pai olha, ó pai diz, ó pai explica, ó pai isto, ó pai aquilo, ó pai, ó pai, ó pai… – pequeno martírio consentido pelos passageiros, mais apáticos do que nostálgicos da infância perdida.

A mãe, ainda nova (embora o corpo acuse exageros nutritivos nas ancas rotundas e no peito, ubérrimo, em queda livre), irradia como as nubentes rumo ao altar consentido. Enlaçada aos abdominais do companheiro, muito mais alto do que ela, poderia até flutuar… Caso o outro não lhe ignorasse o afago, caso não acelerasse o passo, arrastando-a pela coxia do comboio, desejando nitidamente um acidente que a faça tropeçar, desembaraçando-o daquele afecto pegajoso que repudia.

Ela parece não dar por isso. Talvez pela habituação ao trato de reminiscências mouriscas, provavelmente pela saudade perdulária desse marido que torna de uma ausência forçada pelo cárcere em Paços de Ferreira, ri muito, num excesso de gargalhadas, da prole irrequieta, igualmente excitadíssima com a novidade da companhia.

O homem, orçando pelos 30 anos, não lhes dedica, porém, mais do que um vislumbre, não lhes concede mais do que um bocejo de aborrecimento antes de atirar o saco dos haveres para o chão e largar o corpo, pesadamente, no banco. A mulher, convertida em apêndice, não o solta. Finca as unhas, lacadas a vermelho tonitruante de pincel incerto, nos braços do cônjuge – musculosos e tatuados por artista desenganado e analfabeto –, desabando com ele na fímbria do assento.

O marido acomoda-se, estirando as pernas. Deposita as texanas oleosas no banco da frente, indiferente ao cenho reprovador dos circunstantes insones. As calças, muito cingidas – tal como a camisola negra, de resto – insinuam os genitais na ganga coçada pelo uso, impondo categóricas a condição de macho no relevo da vergôntea. A fidelíssima esposa lança um vislumbre discreto àquela promessa de orgasmos que a prisão adiou, alçando os olhos ao rosto duro que ensaia novo bocejo, indeferindo a súplica dela. Que não desiste, antes persiste na contemplação do outro, possuída daquela admiração incondicional, canídea, mescla de romantismo e fixação mórbida, que redunda na idolatria. E ele, investido dessa petulância divina, castiga-lhe o pecado de um beijo, tangencial mas famélico, no pescoço bovino com safanão brusco.

– Estou todo roto. Vê lá se me deixas dormir, caralho! – justifica, imprimindo um timbre ácido, definitivo, no metal da voz.

As filhas, embora pequenas, acorrem alarmadas para resgatar a mãe.

– Ó pai, olha como nós sabemos dançar com'à Shakira –, dizem, iniciando meneios de ancas que pretendem mimar o erotismo da odalisca colombiana. A mãe, grata, socorre-se dos rebentos para eludir a desilusão. E sorri de novo. Acostumada a esperar, adestrada no servir.

Mas o homem, com desprezo esclavagista, cruza os braços sobre o peito e cerra os olhos, vociferando impropérios que enunciam falta de paciência para graças infantis.

– Calai-vos, meninas, que o vosso pai quer descansar – apressa-se a mulher, menos autoritária do que suplicante. As miúdas descodificam o registo. Afastam-se dali, algo cabisbaixas, e sentam-se finalmente noutro banco. Um passageiro condoído pisca-lhes o olho, tenta insuflar-lhes algum ânimo nos egos devastados. Debalde. Estão tristes, de uma tristeza profunda, sem remédio.

A mulher rodeia a provação com estoicismo. Revelando falta de tonsura nas axilas, logra passar-lhe um braço pela nuca. Precipita os dedos para o peito másculo do marido, simulando, na passagem suave das unhas sobre os mamilos do macho, desenhos de signos antigos, convites abrasivos traficados, de geração em geração, entre as mulheres amantíssimas tomadas pelos ardores do sexo.

– Foda-se! Não tens espaço? A gente fala mais logo, que agora quero dormir, já te disse. Que merda! – atira-lhe ele.

A mulher obedece. E afasta-se, junta-se às filhas, abancadas mais à frente, num silêncio sepulcral, velando o cadáver das suas ilusões, assassinadas com inusitada brutalidade pelo homem que ainda resfolega e se acomoda de novo ao veludo do banco.

A promessa dele, implícita no ralho boçal, não restitui qualquer ânimo à fêmea recusada. Lá no fundo, sabe que o reenvio para o futuro é apenas o subterfúgio do fracasso, literal fuga para a frente do brutamontes em liberdade. Ainda que, mais logo, deitados no lodo dos lençóis, ele cumpra, e se enlacem como animais vorazes, ela sabe, com a sapiência das mulheres já por demasiadas vezes feridas, que se trata apenas de satisfação orgânica, de contacto sem intimidade. Sabe que os gemidos dele – sufocados, no hábito da masturbação discreta das casernas – remetem mais para o desejo de outros corpos do que para o dela, tão igual ao da Vénus de Willendorf.

E, todavia, nenhum outro seria mais apropriado ao conúbio de tal besta paleolítica.

2 comentários:

Leonor Paiva Watson disse...

Acabei de levar um murro na consciência. Mas, ainda assim, os viajantes deste blog correm o risco de ficar viciados. Fazem bem, às vezes, umas tareias na consciência. Quando for grande, a propósito, quero saber escrever assim. Sem ironia.

Sophia

jpcoutinho disse...

o meu chefe de secretaria também me contou essa história, agora já vi onde a sua cabeça tortuosa a copiou. Não posso deixax a net ligada.;))