Se as almas do casal são gémeas, os crânios em que habitam nem por isso.
A cabeleira da senhora, tingida por um castanho demasiado uniforme, demasiado anacrónico para ser natural, denota um aprumo cirúrgico, próprio daquela auto-estima excessiva que advêm com a idade e a consciência feminina da beleza desolada pelos anos que urge reparar. E repara, na minúcia dos antiquários obcecados com o restauro de jóias embaciadas pelo tempo.
O açaimo da laca intransigente contrasta com o desarranjo capilar do companheiro. Tão idoso como ela, ostenta um novelo grisalho em desalinho permanente, que a mais leve brisa converte em flâmula vigorosa, drapejando caracóis de propaganda anarquista.
Visto pela rama – literalmente –, o casal de velhos configura um conflito sem acordo possível…
Pura ilusão. Olhar mais atento descobre uma harmonia retroactiva de gestos e gostos. Sentados nos bancos de inox brilhante, polido pelo trânsito contínuo de nádegas cansadas, os velhos prolongam-se no mesmo vagar absorto com que bebem a Coca-Cola dietética, nas manchas castanhas que polinizam as mãos e o rosto, no trajar iconoclasta que lhes reveste o corpo com fatos de treino dissonantes dos sapatos austeros, de fino cabedal e desenho clássico, que o trazem calçado.
O dela é branco, listado a vermelho nos braços e nas pernas, sem nexo aparente com as sandálias "stilleto", finíssimas e talhadas sobre o cadáver de répteis incautos, tal como a carteira a tiracolo; o dele é azul, mas de matiz indefinido, riscado no peito por faixas de amarelo, num divórcio irrevogável com os sapatos de matriz Gucci, ostentando as conceituadas ferragens sobre o cabedal preto e uma tira de tecido bicolor.
A heresia do casal – cujo idioma quebrado e tez nívea remetem para os paradigmas nórdicos – é notada por duas meninas em idade casadoira que deambulam pelo cais nocturno e quase desértico de Campanhã. Versadas na liturgia da MTV, doutrinadas pelo fascismo dos franshisados colonialistas e vestidas pelos saldos de Verão, largam os corpos em gargalhadas ostensivas, contorcendo, na enfatização grotesca do riso, a cintura desnatada que alberga zircão no umbigo.
O casal de forasteiros apercebe-se da zombaria sem tino das meninas muito "fashion", muito jovens, frescas e borbulhantes, que se prolonga até à chegada do comboio amarelo – dali a nada, aliás. Depositando, com rigor pedagógico, as latas vazias no lixo, enlaçam as mãos e dirigem-se, como adolescentes enamorados, para a composição. Nas mãos livres, ela transporta um saco de cabedal, ele um porta-fatos liso, elegante.
Ao passarem pelo par que gargalha ainda, a senhora do cabelo blindado, olhando de soslaio, sorri. Discreta. E olha uma última vez ainda, antes de entrar na carruagem. Sorrindo sempre. Com toda a discrição, num sorriso mordaz.
Talvez tivesse reparado nas costuras tortuosas, paridas por agulhas com Parkinson alojadas nos tugúrios fabris do Vale do Ave, que vestem as meninas dadas à semiótica da futilidade, não obstante trazerem bordada, nas camisolas de alças que falseiam o volume do peito, a griffe de um famoso costureiro norte-americano muito aclamado na feira de Espinho.
Ou talvez houvesse percebido nelas o ensejo de escaparem ao lumpen pela via da aparência, adequando-a aos cânones do efémero em mutação constante – que tornam aceitáveis nos melhores salões, e até chiquérrimas, as "havaianas", reciclagem pós-modernista do xanato que envergonhava os pobres de antanho – após pesquisas demoradas pelas saladas televisivas da época.
O talvez tivesse percebido que o kitsch é universal, embora com expressões diversas – Dorfles ganhou a vida a prová-lo, Eco e Lipovetsky divertiram-se a fazê-lo.
De qualquer modo, o gosto não se compra – seja na Rodeo Drive ou na Feira da Vandoma (é por isso que há javardos que ignoram as pérolas e reclamam diamantes).
O gosto cultiva-se
Num e noutro caso, baldaram-se às noções mínimas… Campanhã, ao fim e ao cabo, também não inspira ninguém.
A cabeleira da senhora, tingida por um castanho demasiado uniforme, demasiado anacrónico para ser natural, denota um aprumo cirúrgico, próprio daquela auto-estima excessiva que advêm com a idade e a consciência feminina da beleza desolada pelos anos que urge reparar. E repara, na minúcia dos antiquários obcecados com o restauro de jóias embaciadas pelo tempo.
O açaimo da laca intransigente contrasta com o desarranjo capilar do companheiro. Tão idoso como ela, ostenta um novelo grisalho em desalinho permanente, que a mais leve brisa converte em flâmula vigorosa, drapejando caracóis de propaganda anarquista.
Visto pela rama – literalmente –, o casal de velhos configura um conflito sem acordo possível…
Pura ilusão. Olhar mais atento descobre uma harmonia retroactiva de gestos e gostos. Sentados nos bancos de inox brilhante, polido pelo trânsito contínuo de nádegas cansadas, os velhos prolongam-se no mesmo vagar absorto com que bebem a Coca-Cola dietética, nas manchas castanhas que polinizam as mãos e o rosto, no trajar iconoclasta que lhes reveste o corpo com fatos de treino dissonantes dos sapatos austeros, de fino cabedal e desenho clássico, que o trazem calçado.
O dela é branco, listado a vermelho nos braços e nas pernas, sem nexo aparente com as sandálias "stilleto", finíssimas e talhadas sobre o cadáver de répteis incautos, tal como a carteira a tiracolo; o dele é azul, mas de matiz indefinido, riscado no peito por faixas de amarelo, num divórcio irrevogável com os sapatos de matriz Gucci, ostentando as conceituadas ferragens sobre o cabedal preto e uma tira de tecido bicolor.
A heresia do casal – cujo idioma quebrado e tez nívea remetem para os paradigmas nórdicos – é notada por duas meninas em idade casadoira que deambulam pelo cais nocturno e quase desértico de Campanhã. Versadas na liturgia da MTV, doutrinadas pelo fascismo dos franshisados colonialistas e vestidas pelos saldos de Verão, largam os corpos em gargalhadas ostensivas, contorcendo, na enfatização grotesca do riso, a cintura desnatada que alberga zircão no umbigo.
O casal de forasteiros apercebe-se da zombaria sem tino das meninas muito "fashion", muito jovens, frescas e borbulhantes, que se prolonga até à chegada do comboio amarelo – dali a nada, aliás. Depositando, com rigor pedagógico, as latas vazias no lixo, enlaçam as mãos e dirigem-se, como adolescentes enamorados, para a composição. Nas mãos livres, ela transporta um saco de cabedal, ele um porta-fatos liso, elegante.
Ao passarem pelo par que gargalha ainda, a senhora do cabelo blindado, olhando de soslaio, sorri. Discreta. E olha uma última vez ainda, antes de entrar na carruagem. Sorrindo sempre. Com toda a discrição, num sorriso mordaz.
Talvez tivesse reparado nas costuras tortuosas, paridas por agulhas com Parkinson alojadas nos tugúrios fabris do Vale do Ave, que vestem as meninas dadas à semiótica da futilidade, não obstante trazerem bordada, nas camisolas de alças que falseiam o volume do peito, a griffe de um famoso costureiro norte-americano muito aclamado na feira de Espinho.
Ou talvez houvesse percebido nelas o ensejo de escaparem ao lumpen pela via da aparência, adequando-a aos cânones do efémero em mutação constante – que tornam aceitáveis nos melhores salões, e até chiquérrimas, as "havaianas", reciclagem pós-modernista do xanato que envergonhava os pobres de antanho – após pesquisas demoradas pelas saladas televisivas da época.
O talvez tivesse percebido que o kitsch é universal, embora com expressões diversas – Dorfles ganhou a vida a prová-lo, Eco e Lipovetsky divertiram-se a fazê-lo.
De qualquer modo, o gosto não se compra – seja na Rodeo Drive ou na Feira da Vandoma (é por isso que há javardos que ignoram as pérolas e reclamam diamantes).
O gosto cultiva-se
Num e noutro caso, baldaram-se às noções mínimas… Campanhã, ao fim e ao cabo, também não inspira ninguém.
Como se percebe pela prosa. Há dias assim.
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