8 de janeiro de 2007

Abismo Negro (com vista para o Éden)


Anda triste, este comboio com destino ratificado por um bilhete pedido a contragosto e que encerra uma viagem tormentosa, amputada desse novo e radioso sentido que, por momentos, uma ninfa de olhos tristes, furtada à vigília militar do arcanjo Gabriel, prometeu sem nunca o enunciar.
E, no entanto, segue cheia, a nave de ferro e vidro. Repleta de gente que cintila outra vez no artifício dos trapos novos, despojos das ferozes batalhas em que refocilaram na disputa dos saldos extemporâneos. Gente que volve ao bulício das certezas quotidianas com trejeitos e argumentos do costume - lamenta os excessos natalícios, exibe presentes e troca receitas, protesta contra a carga tributária, sonha com o calor dos trópicos, comenta a vida alheia, insulta árbitros e ministros...
Ah, mas esse bulício da normalidade suburbana que regressa ao expediente da sobrevivência não atenua a ausência da luz que, por três meses, iluminou os escaninhos da ferrovia. Há agora um vazio que canibaliza tudo em redor, abismo negro devorando a constelação artificial dos passageiros felizes pelo reencontro com os seus pares.
Anda triste, pois, este comboio. O amarelo que o recobre é bílis pura.
Anda triste este monstro de metal, esquife conduzindo à negra tortura sem a expectativa de um grão de luz que a possa atenuar...
Já não há bilhetes para o Paraíso?
Ou para um apeadeiro, que seja, lá perto?
Já não há bilhetes?...

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