12 de outubro de 2007

O Andarilho de Cronos


Foi há pouco mais de um ano, por esta altura, numa luminosa manhã, lixiviada pelo Sol horizontal que prenuncia o estertor da canícula. Nesse dia radioso, em que o Outono se fez anunciar pela luz quebrada e rasteira, rompendo a densa névoa matinal, a sonolenta harmonia da caterva embarcada foi acometida de um colapso, abrupto, no apeadeiro de Pereirinhas.


O topónimo, não obstante diminutivo, não faz jus à minudência do brejo, inscrito na ferrovia como um furúnculo reincidente que o hábito tornou inócuo ao portador. Na verdade, a sua existência pouco razoável deve-se à generosidade dos antigos, primeiro, e, mais recentemente, à reivindicação do povo local, insensível ao argumentário contabilístico da CP e ao combate do défice orçamental. Por ocasião da reforma do percurso, ameaçou levantar carris e refundar a Patuleia com gritos de ira, numa espécie de jihad laica e tribal, caso o comboio amarelo não travasse ali a marcha pelo menos três vezes por dia.


Numa deferência mais covarde do que piedosa face ao risco terrorista, cujo potencial avulta no vandalismo pictórico que gangrena o material não circulante entre Porto e Guimarães, o comboio amarelo lá começou a estacionar, cumprindo o castigo da tripla humilhação quotidiana. Queda-se por uns instantes, exposto como um troféu, rendendo preito à fúria da populaça, resfolega impaciência, destila azedume, e parte. Quase sempre tão vazio como à chegada.


[Agora, pára sempre ali].

Naquela manhã, porém, havia duas mulheres na plataforma, geralmente tão deserta que nem os broncos do spray investem nas suas paredes, cônscios da futilidade do crime exibicionista por manifesta ausência de público. Com o aproximar do bólide amarelo, as duas silhuetas fundiram-se num amplexo estreitíssimo, que não esmoreceu quando o comboio parou e que permaneceu, quiçá mais apertado ainda, quando as portas automáticas abriram, escancaradas no sorriso sardónico de boas-vindas.


O revisor assomou à franquia com o bocejo próprio das rotinas e varreu, num relance de largo treino, o cais desértico de Pereirinhas, enxertado entre uma fábrica têxtil agonizante, sobranceira ao rio Ave, quimicamente esterilizado, e as hortas clandestinas de certo remedeio familiar.


Embora zeloso como os eunucos dos haréns de Suleimão, o funcionário deixou que as duas mulheres, imóveis naquele abraço apertadíssimo, esgotassem o cronómetro das portas automáticas. Fecharam-se, leais ao mecanismo temporizador, de fabrico alemão; reabriram de imediato, contrariadas no seu rigor teutónico pelo revisor, sensível àquele manifesto público de ternura, cuja raridade obriga à contemplação.


As idades desiguais sugeriam-nas mãe e filha. O rosto da mais nova, exposto às vidraças do comboio e tão crispado como as suas mãos, fincadas nas costas maternas, deixava perceber que aquela não seria uma despedida banal.


Naquele abraço esmagador, que lhes convocava todos os sentidos, faltava a displicência própria das ausências curtas, a leveza permitida pela garantia do reencontro algures e para breve, sem precisão de agenda nem cruzes no calendário.


Tornaram a fechar, brutas, as portas do comboio. E de novo abriram a mando do revisor, cujo pudor, vencido pelo dever, se eclipsou algures na cinza da farda.


- Vamos lá! Vamos lá que não há tempo a perder!...


Sacrílego, o abrupto reparo estilhaça o instante de vera religiosidade no improvável sacrário de Pereirinhas.


É a mãe que toma a iniciativa de recolher os destroços da magia e volver ao Mundo tangível. Suave, desprende-se do abraço da filha que chora baixinho – brotando gritos mudos, como os dos condenados nas sessões de quimioterapia, dos olhos fechados – e toca-lhe o rosto contrito num afago breve. Um gesto impotente, mais de fuga do que de consolo.


Afasta-se dois passos, a mais nova. Nota-se, na mandíbula tensa, no latejar da carótida saliente, o supremo esforço por serenar e volver à discrição em que terá sido educada. Há muito, por certo, numa época em que a honra seria mais respeitável do que a liquidez financeira da boçalidade madeirense…


A idosa ainda se demora mais um pouco, costas curvas num debruçamento e voltadas para o comboio amarelo. Nele, o revisor tamborila a impaciência e franze o sobrolho. E, nessa demora que tanto o aflige, nem repara que se vão calando os passageiros, nem tampouco nas razões por que emudecem.


Nota-o tarde de mais, quando a senhora – tão frágil, afinal – vence em passinhos muito curtos, apoiada num andarilho de alumínio, o par de metros que a separam da composição. Diminuto, tal trajecto; e, no entanto, Moisés, quiçá mais velho do que a velha do andarilho, terá sofrido menos, e sido mais lesto, na travessia do Mar Vermelho.


Tlac… e uma pausa; tlac… e nova pausa; tlac… e ainda outra pausa, e mais outra, senão tantas mais. Está exausta, a velha do andarilho. Cansada de tantas pausas, como as das procissões fúnebres.


Antes de entrar, pára novamente, defronte ao revisor. A farda não se mexe, transida de vergonha. A voz do funcionário, tão autoritária ainda há pouco, com o peso de baixo profundo, não lhe traz a desculpa que acaba por apenas ensaiar, abortada pelo sorriso cansado, mas afável, da senhora. Perdoa-o, num sussurro tépido e maternal, acostumada a sossegar rapazinhos apanhados em falta.


- Não faz mal, não se preocupe. Eu entendo que não queira fazer esperar estas pessoas todas… E tem horários a cumprir, não é?...


O revisor, de bibe e fralda, íris colada no chão, meneia a cabeça – que sim, pois é a vida dele, tem de ser, coiso e tal -, e dá ordem de marcha ao comboio amarelo. Ah, como gostaria de se livrar daquela gravata que o sufoca de repente… Não se livra, nem do acessório nem do odioso que já lhe pesa e o deixa contrito.


É incapaz de encarar a idosa, assim como aos demais passageiros, cujos olhos acusadores pressente cravados na nuca, degolando-o como a um criminoso infecto e sem remissão. "Grandessíssimo filho da puta, que não respeita nada nem ninguém", julgarão alguns, talvez até aqueles que se levantam, inclusive entre a estudantada, para ceder o lugar à velha do andarilho.


Ela abanca no assento imediato, próximo da porta, prevenindo a queda provável nas ondulações da ferrovia. Recosta o corpo, extenuado por tão pouco, e desce as pálpebras quase translúcidas, cerzidas por veias muito finas. Já não vê o derradeiro aceno da filha que, sozinha no cais, morde ainda o choro.


Adivinha-o, não quer confirmá-lo nem alongar mais o martírio daquele adeus. Tem a idade e a sabedoria dos pragmáticos, a mulher do andarilho. O que lhe falta é saúde. E tempo. Sobeja-lhe a paciência dos penitentes.


Mas não muita. Chegados a S. Bento, quando a chusma de passageiros se precipita para fora do comboio e se espalha pela gare, a velha do andarilho retoma a marcha, lenta e de compasso difícil, para fora da carruagem. O revisor aguarda-a, cavalheiro, à porta. Em sentido. E, à passagem da senhora, balbucia novo pedido de desculpas, solicita a indulgência da mulher. E ela, com a firmeza dos forcados, replica:


- Deixe lá, que um dia saberá o que é não ter tempo a perder. Será no momento em que deixar de se importar com a estupidez e a má-educação dos outros.

1 comentário:

Xxx disse...

Olá... gostei muito do site.... continuei escrevendo... voltarei mais vezes.

Visite meus sites, se desejar.

Abs.

Kleber