30 de agosto de 2006

Locomotiva de Noé


Se a Arca de Noé tivesse rodas, seria amarela e andaria sobre carris. Todos os animais seriam passageiros pagantes ou beneficiários do passe social. Os indigentes, esses, estariam condenados ao Dilúvio. Uma hipótese bíblico-ferroviária que, baseada na observação participante e quotidiana da linha Porto-Guimarães, procura contribuir para sanar a profunda discordância entre criacionistas e evolucionistas.

Ass: Noé, o proto-maquinista

29 de agosto de 2006

Kitsch global


Se as almas do casal são gémeas, os crânios em que habitam nem por isso.

A cabeleira da senhora, tingida por um castanho demasiado uniforme, demasiado anacrónico para ser natural, denota um aprumo cirúrgico, próprio daquela auto-estima excessiva que advêm com a idade e a consciência feminina da beleza desolada pelos anos que urge reparar. E repara, na minúcia dos antiquários obcecados com o restauro de jóias embaciadas pelo tempo.

O açaimo da laca intransigente contrasta com o desarranjo capilar do companheiro. Tão idoso como ela, ostenta um novelo grisalho em desalinho permanente, que a mais leve brisa converte em flâmula vigorosa, drapejando caracóis de propaganda anarquista.

Visto pela rama – literalmente –, o casal de velhos configura um conflito sem acordo possível…

Pura ilusão. Olhar mais atento descobre uma harmonia retroactiva de gestos e gostos. Sentados nos bancos de inox brilhante, polido pelo trânsito contínuo de nádegas cansadas, os velhos prolongam-se no mesmo vagar absorto com que bebem a Coca-Cola dietética, nas manchas castanhas que polinizam as mãos e o rosto, no trajar iconoclasta que lhes reveste o corpo com fatos de treino dissonantes dos sapatos austeros, de fino cabedal e desenho clássico, que o trazem calçado.

O dela é branco, listado a vermelho nos braços e nas pernas, sem nexo aparente com as sandálias "stilleto", finíssimas e talhadas sobre o cadáver de répteis incautos, tal como a carteira a tiracolo; o dele é azul, mas de matiz indefinido, riscado no peito por faixas de amarelo, num divórcio irrevogável com os sapatos de matriz Gucci, ostentando as conceituadas ferragens sobre o cabedal preto e uma tira de tecido bicolor.

A heresia do casal – cujo idioma quebrado e tez nívea remetem para os paradigmas nórdicos – é notada por duas meninas em idade casadoira que deambulam pelo cais nocturno e quase desértico de Campanhã. Versadas na liturgia da MTV, doutrinadas pelo fascismo dos franshisados colonialistas e vestidas pelos saldos de Verão, largam os corpos em gargalhadas ostensivas, contorcendo, na enfatização grotesca do riso, a cintura desnatada que alberga zircão no umbigo.


O casal de forasteiros apercebe-se da zombaria sem tino das meninas muito "fashion", muito jovens, frescas e borbulhantes, que se prolonga até à chegada do comboio amarelo – dali a nada, aliás. Depositando, com rigor pedagógico, as latas vazias no lixo, enlaçam as mãos e dirigem-se, como adolescentes enamorados, para a composição. Nas mãos livres, ela transporta um saco de cabedal, ele um porta-fatos liso, elegante.

Ao passarem pelo par que gargalha ainda, a senhora do cabelo blindado, olhando de soslaio, sorri. Discreta. E olha uma última vez ainda, antes de entrar na carruagem. Sorrindo sempre. Com toda a discrição, num sorriso mordaz.

Talvez tivesse reparado nas costuras tortuosas, paridas por agulhas com Parkinson alojadas nos tugúrios fabris do Vale do Ave, que vestem as meninas dadas à semiótica da futilidade, não obstante trazerem bordada, nas camisolas de alças que falseiam o volume do peito, a griffe de um famoso costureiro norte-americano muito aclamado na feira de Espinho.

Ou talvez houvesse percebido nelas o ensejo de escaparem ao lumpen pela via da aparência, adequando-a aos cânones do efémero em mutação constante – que tornam aceitáveis nos melhores salões, e até chiquérrimas, as "havaianas", reciclagem pós-modernista do xanato que envergonhava os pobres de antanho – após pesquisas demoradas pelas saladas televisivas da época.

O talvez tivesse percebido que o kitsch é universal, embora com expressões diversas – Dorfles ganhou a vida a prová-lo, Eco e Lipovetsky divertiram-se a fazê-lo.

De qualquer modo, o gosto não se compra – seja na Rodeo Drive ou na Feira da Vandoma (é por isso que há javardos que ignoram as pérolas e reclamam diamantes).

O gosto cultiva-se

Num e noutro caso, baldaram-se às noções mínimas… Campanhã, ao fim e ao cabo, também não inspira ninguém.

Como se percebe pela prosa. Há dias assim.

24 de agosto de 2006

A besta de Darwin


No comboio terminal para Guimarães, ao respirar mecânico da composição amarela, ansiolítico e quase sedativo, sobrepõe-se quase sempre um silêncio monástico. Inspirado pelo breu nocturno, ratificado pela vacuidade dos lugares sem bilhete e alimentado pelo alheamento opiáceo dos esparsos viajantes, privados de companhia ou saturados dela. Essa espécie de recolhimento sem meditação não chega a ser perturbada pelos noviços, inopinados por tão raros, que procedem dos apeadeiros. Geralmente, entram naquele cenóbio ambulante com a muda reverência dos acólitos ou trazem o aspecto do refugiado que já só busca um pouco de paz. Sentam-se, adequam a vista à luz hospitalar das carruagens e volvem ao conforto do anonimato.

A semana passada, porém, o alarde de uma alegria furiosa eclipsou aquela placidez conventual. Uma família – pai, mãe e duas filhas ainda sem idade para militar na escolaridade obrigatória do 2.º Ciclo – entraram em Ermesinde, plataforma distributiva para os recônditos setentrionais, trazendo com ela o ruído de uma convivência doméstica disfuncional. A ocorrência, já de si excepcional, converteu-se rapidamente numa experiência antropológica singular, elucidativa das fragilidades que esburacam as teses darwinistas. Afinal, o elo entre os símios e o Homem não se perdeu – esse vil mamífero, díscolo e beligerante, existe. Está entre nós e frequenta comboios amarelos.

E, no entanto, a cena até sugeria certa redenção.

As meninas, algo franzinas e um pouco andrajosas, reflectindo uma felicidade pueril nas arcadas sujeitas à mutilação própria da idade, precedem o casal em saltinhos de contentamento, solicitando as atenções paternas em apelos constantes – ó pai olha, ó pai diz, ó pai explica, ó pai isto, ó pai aquilo, ó pai, ó pai, ó pai… – pequeno martírio consentido pelos passageiros, mais apáticos do que nostálgicos da infância perdida.

A mãe, ainda nova (embora o corpo acuse exageros nutritivos nas ancas rotundas e no peito, ubérrimo, em queda livre), irradia como as nubentes rumo ao altar consentido. Enlaçada aos abdominais do companheiro, muito mais alto do que ela, poderia até flutuar… Caso o outro não lhe ignorasse o afago, caso não acelerasse o passo, arrastando-a pela coxia do comboio, desejando nitidamente um acidente que a faça tropeçar, desembaraçando-o daquele afecto pegajoso que repudia.

Ela parece não dar por isso. Talvez pela habituação ao trato de reminiscências mouriscas, provavelmente pela saudade perdulária desse marido que torna de uma ausência forçada pelo cárcere em Paços de Ferreira, ri muito, num excesso de gargalhadas, da prole irrequieta, igualmente excitadíssima com a novidade da companhia.

O homem, orçando pelos 30 anos, não lhes dedica, porém, mais do que um vislumbre, não lhes concede mais do que um bocejo de aborrecimento antes de atirar o saco dos haveres para o chão e largar o corpo, pesadamente, no banco. A mulher, convertida em apêndice, não o solta. Finca as unhas, lacadas a vermelho tonitruante de pincel incerto, nos braços do cônjuge – musculosos e tatuados por artista desenganado e analfabeto –, desabando com ele na fímbria do assento.

O marido acomoda-se, estirando as pernas. Deposita as texanas oleosas no banco da frente, indiferente ao cenho reprovador dos circunstantes insones. As calças, muito cingidas – tal como a camisola negra, de resto – insinuam os genitais na ganga coçada pelo uso, impondo categóricas a condição de macho no relevo da vergôntea. A fidelíssima esposa lança um vislumbre discreto àquela promessa de orgasmos que a prisão adiou, alçando os olhos ao rosto duro que ensaia novo bocejo, indeferindo a súplica dela. Que não desiste, antes persiste na contemplação do outro, possuída daquela admiração incondicional, canídea, mescla de romantismo e fixação mórbida, que redunda na idolatria. E ele, investido dessa petulância divina, castiga-lhe o pecado de um beijo, tangencial mas famélico, no pescoço bovino com safanão brusco.

– Estou todo roto. Vê lá se me deixas dormir, caralho! – justifica, imprimindo um timbre ácido, definitivo, no metal da voz.

As filhas, embora pequenas, acorrem alarmadas para resgatar a mãe.

– Ó pai, olha como nós sabemos dançar com'à Shakira –, dizem, iniciando meneios de ancas que pretendem mimar o erotismo da odalisca colombiana. A mãe, grata, socorre-se dos rebentos para eludir a desilusão. E sorri de novo. Acostumada a esperar, adestrada no servir.

Mas o homem, com desprezo esclavagista, cruza os braços sobre o peito e cerra os olhos, vociferando impropérios que enunciam falta de paciência para graças infantis.

– Calai-vos, meninas, que o vosso pai quer descansar – apressa-se a mulher, menos autoritária do que suplicante. As miúdas descodificam o registo. Afastam-se dali, algo cabisbaixas, e sentam-se finalmente noutro banco. Um passageiro condoído pisca-lhes o olho, tenta insuflar-lhes algum ânimo nos egos devastados. Debalde. Estão tristes, de uma tristeza profunda, sem remédio.

A mulher rodeia a provação com estoicismo. Revelando falta de tonsura nas axilas, logra passar-lhe um braço pela nuca. Precipita os dedos para o peito másculo do marido, simulando, na passagem suave das unhas sobre os mamilos do macho, desenhos de signos antigos, convites abrasivos traficados, de geração em geração, entre as mulheres amantíssimas tomadas pelos ardores do sexo.

– Foda-se! Não tens espaço? A gente fala mais logo, que agora quero dormir, já te disse. Que merda! – atira-lhe ele.

A mulher obedece. E afasta-se, junta-se às filhas, abancadas mais à frente, num silêncio sepulcral, velando o cadáver das suas ilusões, assassinadas com inusitada brutalidade pelo homem que ainda resfolega e se acomoda de novo ao veludo do banco.

A promessa dele, implícita no ralho boçal, não restitui qualquer ânimo à fêmea recusada. Lá no fundo, sabe que o reenvio para o futuro é apenas o subterfúgio do fracasso, literal fuga para a frente do brutamontes em liberdade. Ainda que, mais logo, deitados no lodo dos lençóis, ele cumpra, e se enlacem como animais vorazes, ela sabe, com a sapiência das mulheres já por demasiadas vezes feridas, que se trata apenas de satisfação orgânica, de contacto sem intimidade. Sabe que os gemidos dele – sufocados, no hábito da masturbação discreta das casernas – remetem mais para o desejo de outros corpos do que para o dela, tão igual ao da Vénus de Willendorf.

E, todavia, nenhum outro seria mais apropriado ao conúbio de tal besta paleolítica.

22 de agosto de 2006

Suicidas estivais


Rompendo glorioso o plúmbeo matiz que acometeu, nos últimos dias, os céus de Portugal – vertendo nos contribuintes mais cinza do que os incêndios que alimentam a sessão pornográfica sazonal, televisionada sem bolinha vermelha, onde evoluem bombeiros no limiar da resistência, saturados de manobrar mangueiras inúteis como falos exangues –, o Sol regressou. E, com ele, a multidão suburbana ao comboio amarelo. Comprime-se a massa "heliocrática" de veraneantes, ecléctica de bronzeados tardios, relapsos e debutantes, nas carruagens saturadas de gente. Equipadíssima para o tardo culto do estio nos areais do Grande Porto – guarda-sóis, pára-ventos, bóias, braçadeiras, revistas de supermercado e os êxitos literários das gasolineiras, mais a inefável lancheira, mais o creme hidratante de eficácia duvidosa, mais o bronzeador que só um decapante sulfúrico poderá remover, mais o protector solar que jura filtrar tudo menos o cancro da pele, mais o leitor de mp3 oferecido com a barra de sabão rosa, mais a consola portátil comprada na loja do contrabando chinês, mais… Vão como as tropas de elite quando partem para destroçar países demasiado ricos para serem economicamente viáveis. Uns e outros, seguem para a guerra. Quando regressarem, uns e outros terão sobrevivido ao horror. Mas só os primeiros se lançarão, com a felicidade plena da indigência, para o arsenal bioquímico que os aguarda. Disfarçado de areia e mar.

21 de agosto de 2006

Doenças oculares


A primeira paragem do último comboio amarelo para Guimarães, seis minutos depois de partir da estação de S. Bento, no Porto, ocorre em Campanhã, esse vasto não-lugar saturado por gente de ansiedade cronometrada que as linhas distribuem para todo o lado, na urgência de arrumá-la. Na maior parte das vezes, trata-se de um processo ecológico, que descongestiona a paisagem de elementos perturbadores, vagamente antropomórficos, mas definitivamente horrendos (se bem que, embora muito raramente, também ouse furtar, à diletância cansada da vista poluída, produtos de formulação genética que seria útil clonar, em vez de ovelhas, ratos, e demais fauna sem préstimo…).

Naquela hora já algo tardia (21:51) para o funcionalismo suburbano, os passageiros que entram não compensam aqueles que saem, deixando ainda mais vazio o comboio amarelo. O que é óptimo para uma primeira abordagem ao sono – restaurando energias para suportar a maratona de novelas que sucede ao jantar, os lamentos das digníssimas esposas em pantufas surradas, as birras dos filhos tão caprichosos como as mães e as facturas do monopólio da electricidade –, ou para fruir de leituras mais densas. Sucede, porém, que nem todos se entregam a exercícios tão recomendáveis. Há aqueles que, desconfiados da própria Humanidade que partilham, persistem na sua vigília. Colam os olhos a terceiros e vigiam os outros. Dissecam-nos, analisam-nos e classificam-nos. Como objectos. São utentes solitários, geralmente invejosos, amargos e coleccionadores de inferências e conjecturas.

Aquela atitude analítica insistente torna-se razoável quando o comboio segue cheio. Com o espaço vital circunscrito à largura dos ombros – ou ao volume dos glúteos e à grossura das coxas -, os membros tolhidos pela compressão da massa embarcada, sem possibilidade de mexer outra coisa que não o nervo ocular, é quase natural forçar o movimento. Para afirmar a vida (parar é morrer). Ou por mera atitude lúdica. Como distracção neuronal. Olhar sem ver, apenas. Fora isso, é sintoma de uma qualquer descompensação patológica.

Sucede que, por vezes, o fluxo de olhares em trânsito inunda o comboio amarelo, ocupa todos os espaços vazios numa cacofonia de pupilas irrequietas, ansiosas, violadoras. No comboio amarelo, por demasiadas vezes, só viajam doentes que concorrem no trauma da exposição intrusiva.

18 de agosto de 2006

Equívoco

Ups!... apeadeiro errado. Saí atrás dela e era travesti. Não tinha buço...