18 de janeiro de 2007

Cronologia do Bombista Suicida Sem Fé



tic tac tic tac tic tac
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Cada passageiro desta nau de ferro tem um relógio inscrito na alma e um cronómetro sobreposto ao solfejo do coração, a vida agrilhoada por horários implacáveis e compromissos fúteis mas essenciais.
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tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic
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O cinismo dos ponteiros acusa um atraso permanente face à revolução que está por vir e há-de gerar múltiplos profetas de novas mudanças a celebrar. Via internet. Em tempo real. Instantâneo. Como num eterno presente decretado por burocratas punk que carimbam num impresso "NO FUTURE". Sem apelo nem recurso.
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A incerteza e os remorsos contaminam o gado preso neste vagão amarelo que devora segundos desprezando a cadência própria do simples respirar; o anacronismo irrevogável dos operários suburbanos e tabelados é já patológico
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tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic
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… epidémico e até paranóico, nos casos gravíssimos dos pais recentes cujos rebentos desconhecem o conceito do minuto e a importância vital da pontualidade. Egoístas, os putos! Uma geração rasca, certamente.
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tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac
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O desfasamento com a rotação inflexível desse mecanismo de ourives sem rosto nem compaixão suscita a terrível dúvida existencial: "Serei anacrónico?"
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tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac
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Não, por Deus, anacrónico nunca!
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tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac
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Ah, mas já ninguém escapa ao anátema da extemporaneidade, embora haja passageiros mais enfermos do que outros; os doentes terminais vão ali, dormindo um sono fugaz (para ganhar tempo…) estéril de sonhos. E vertem o cansaço sobre o ombro quebrado num fio de saliva grossa. A necessidade é sempre tão deselegante, mamã...
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tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic
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E ocorre, por antítese, a passagem de um livro, sem mácula nem virtude, na qual um homem suaviza o abandono alegando partir apenas durante algum tempo e a consorte, sujeita à invernia do desamor, lhe replica com amargura de penitente: "Quanto é ‘algum tempo' em quilos? Para eu saber quanto me vai custar a tua ausência".
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tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac
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Porque aqui, nesta masmorra sobre carris com grilhetas invisíveis e matiz enganador – amarelo piu-piu, Guiguinho, havias de gostar… – é a presença cronometrada do outro que já se torna insuportável no que dura a viagem sem atalhos: o seu discurso recorrente, a sua tosse constante, o seu riso sem timbre, a sua apatia derrotada, o seu silêncio raivoso, e até o seu dormir mórbido de tão obstinado e que ninguém deseja velar.
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tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic
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Vão vergados pela nostalgia de uma Idade de Ouro ausente de ponto por picar. Sabem – e como ignorá-lo, se mataram já a criança que neles vivia? – que a sua condição suburbana e ordinária está comprometida, não com a glória de uma missão histórica, mas com a insignificância da existência mesquinha confinada à regra que se renova a cada dia. São como Sísifo, mas numa narrativa desprovida do maravilhoso e da errância. E sem Ítaca à vista.
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tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tac tic tac tic tac tic tac
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E nisto, por um destes dias, dispensado o psicanalista por falta de dinheiro ou de Fé, alguém descobrirá que o compasso desse relógio tirano pauta a contagem decrescente da bomba que nele existe. Porque cada passageiro desta nau de ferro é um bombista suicida cuja carga deflagrará. Numa hora qualquer, furtivo instante. Rasgando artérias e, no colapso do miocárdio, estilhaçando uma réstia de alma no silêncio da implosão.
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pum

17 de janeiro de 2007

Sol Matinal


O ruído pragmático e odioso do despertador enche o cérebro - indefeso na sua vadiagem alegre pela Ilha dos Amores ou tão só aconchegado no limbo do coma momentâneo -, escorre sistema nervoso abaixo, arrepia as pilosidades mais recônditas e assegura-nos que o comboio amarelo será inclemente no horário tabelado ao minuto.

Trôpego, precipita-se o passageiro suburbano narcotizado pelo sono, sempre demasiado breve, para o matutino verdugo portátil que também serve para comunicar quando o saldo lho permite. Desliga a sereia que, na razão da doutrina do ataque preventivo, o acusa desse crime hediondo de pretender descansar mais do que a ração permitida, e distingue, por entre a profusa ramela em que se petrificaram os humores nocturnos, um ícone promissor no rectângulo de cristais líquidos: mensagem.

"Ena! Quem será?", cogita o suburbano ainda ébrio, elaborando fantasias sobre o inesperado e o remetente.

"Peço desculpa d enviar uma sms a esta hora,m acabei d encontrar a sua carteira.Chamo me Nuno Freitas e trabalho na CP.Quando quiser ligue p este numero”.
Enviada:
17-Jan-2007
05:46:03

Ligou. E uma voz do outro lado, desculpando-se outra vez no meio de uma profusão de sons mecânicos, explica que sim, que encontrou a carteira, e que sim, que tem dinheiro (uma nota estaladiça de 50 euros!), e que sim, que não tem problema nenhum em deixá-la em S. Bento dali a nada, e que sim, que está ali para isso, sim, para servir os utentes, mesmo aqueles mais incautos, mais esquecidos, mais cansados. É a sua missão.

O utente suburbano já desperto percebe então que algo no seu Mundo pequenino, estruturado em larga medida em torno dos horários do comboio amarelo, mudou. Para melhor. Porque ainda há missionários como o maquinista Nuno Freitas e o revisor que ontem o acompanhou no comboio das 21.45 horas para Guimarães que têm sentido missionário, honradez e honestidade.

Coisa estranha nesta era do cinismo. Mas eles existem, e estão entre nós.

Ainda bem, e bem hajam.

P.S. – Fica a promessa de suavizar os insultos às vossas dilectas progenitoras nas oportunidades que, estamos certos, não faltarão…

8 de janeiro de 2007

Abismo Negro (com vista para o Éden)


Anda triste, este comboio com destino ratificado por um bilhete pedido a contragosto e que encerra uma viagem tormentosa, amputada desse novo e radioso sentido que, por momentos, uma ninfa de olhos tristes, furtada à vigília militar do arcanjo Gabriel, prometeu sem nunca o enunciar.
E, no entanto, segue cheia, a nave de ferro e vidro. Repleta de gente que cintila outra vez no artifício dos trapos novos, despojos das ferozes batalhas em que refocilaram na disputa dos saldos extemporâneos. Gente que volve ao bulício das certezas quotidianas com trejeitos e argumentos do costume - lamenta os excessos natalícios, exibe presentes e troca receitas, protesta contra a carga tributária, sonha com o calor dos trópicos, comenta a vida alheia, insulta árbitros e ministros...
Ah, mas esse bulício da normalidade suburbana que regressa ao expediente da sobrevivência não atenua a ausência da luz que, por três meses, iluminou os escaninhos da ferrovia. Há agora um vazio que canibaliza tudo em redor, abismo negro devorando a constelação artificial dos passageiros felizes pelo reencontro com os seus pares.
Anda triste, pois, este comboio. O amarelo que o recobre é bílis pura.
Anda triste este monstro de metal, esquife conduzindo à negra tortura sem a expectativa de um grão de luz que a possa atenuar...
Já não há bilhetes para o Paraíso?
Ou para um apeadeiro, que seja, lá perto?
Já não há bilhetes?...