15 de setembro de 2006

Frustrações Religiosas


Os últimos a embarcar agarraram-se pelos dentes, ingénitos ou protésicos, ao comboio amarelo com o desespero dos naufragados e a complacência do maquinista. Ao estrépito da manada em desalinho que penetrou na composição adormecida em Campanhã, sobreveio a algaraviada com sotaque nortenho produzida pela turba, ampliando o risco de síncope aos passageiros mais fracos do miocárdio. E uma ligeira fúria nos demais, que cerraram o cenho e o natural mutismo de quem não pretende ser incomodado.

Debalde. A massa de grunhos, trajada de azul e branco, ignorou a subtileza do reparo, e prosseguiu no debate, caudaloso de inanidades, com fervor religioso. E o mesmo desprezo pelo semelhante dos fanáticos que cultivam o assassínio ritual.

Porque embora não pareça, esses grunhos são de estirpe muito mais nefasta do que aqueles outros a quem o acne baralha e traumatiza (ver A Revolta do Grunho Suburbano): estes são grunhos maduros e doutrinados. Sorvem o catecismo nas bastas capelas do futebol bairrista, entre uma mine e dois coiratos.

E que, regressando da prédica com evidente desânimo, vacilantes na sua Fé diante da fraca récita que os levou ao Estádio do Dragão, tentam exorcizar fantasmas moscovitas com os gritos furiosos dos impotentes.

Ficaram a nulos. Ficaram fulos. E não ficaram por lá.

2 de setembro de 2006

Beijos suicidas



Atirou-se. Mesmo. Atirou-se assim como os suicidas livres de todo o peso. Atirou-se. Mas atirou-se para a vida. No cais de embarque da linha 6, ela atirou-se, saída do Intercidades que acabava de chegar, para os braços dele, tão ansiosos como ela, desse amplexo que lhes resgata a saudade. Ele que esperava, alheio ao bulício da estação, há demasiado tempo pelo comboio que, chegado à tabela, enfermava de um atraso enorme na figura de um único passageiro: ela, que se atirou nos braços dele como os suicidas.

E como eles estaria livre de todo o peso. E tão leve seria que, enlaçando os braços no pescoço dele, cruzando-lhe as pernas nas espáduas dele, ele não acusou esforço, antes se ajeitou num longo beijo, nunca demasiado longo, mas tão longo como a viagem desse comboio outro que a levou, e desse comboio aqueloutro, este que a trouxe finalmente.

Um beijo só não chegou para repor o curso do Mundo. Por mais longo que fosse, faltaria sempre outro para obliterar a distância, iludir a espera. Por isso trocam novo beijo, mudam a posição e mantém as bocas unidas. Reposicionam-se, ensaiam tangos mudos, contorcem os corpos enlaçados como ginastas olímpicos no limbo da sua paixão. E beijam-se. Os comboios passam por Campanhã, as pessoas passam por Campanhã, o tempo passa por Campanhã, mas não por eles que, num cais de embarque em Campanhã, estão sós, trocando beijos. Longos.

Não há qualquer fotojornalista em Campanhã que imortalize esse beijo mais iconográfico, certamente, que aqueloutro do marinheiro em Times Square, congelado por Eisenstaedt nas páginas da Life. Ou ainda esse outro que Doisneau vislumbrou numa esplanada de Paris. Não há.

Mas há o casal que troca beijos longos.

E aquele passageiro que o observa de longe, nostálgico de beijos assim. Longos. Como se não houvesse mais ninguém. Como se não houvesse amanhã. Um beijo com a intensidade dos beijos de despedida dos suicidas que renegam o convite da morte no abraço da pessoa amada.

1 de setembro de 2006

A revolta do grunho suburbano


O comboio amarelo é fértil em exemplares do grunho juvenil. Principalmente no termo do Verão, quando o balanço da actividade sexual desses energúmenos demonstra, sem equívocos, a frustração das expectativas primaveris e hormonais. Sem surpresas, de resto, excepto para eles próprios, ainda demasiado crentes na utopia. Ou apenas demasiado estúpidos. Enfim, grunhos. Imberbes e suburbanos.

Anteontem, meia dúzia deles entrou, esbaforida, na última carruagem do derradeiro comboio para Guimarães (que parte de S. Bento, no Porto, às 21.45 horas) num atropelo linguístico de impropérios tonitruantes – sintomático da educação deficitária que dá consistência ao arquétipo do grunho suburbano –, e devidamente ataviada com boné de basebol sobre o cabelo rapado nas têmporas e comprido na nuca, brinco minimal no lóbulo esquerdo, bermudas de ganga encardida abaixo do joelho, sapatilhas informes e fedorentas a reclamar desparasitação urgente. Resquícios da cena "grunge", em estado terminal nos EUA, mas ainda vigorosa num Vale do Ave em que a recessão é endémica e permanente.

A genuína estirpe desses grunhos, sublinhada por uma atmosfera sudorífera que gravita em torno das t-shirts alusivas a paraísos tropicais impronunciáveis, se já havia ameaçado revelar-se no tráfego das conversações, afirma-se plena em Águas Santas. O revisor, passando em marcha acelerada pelo grupo, pergunta-lhe se "já está", o que, na economia expressiva do léxico ferroviário, pretende indagar se acaso os bilhetes já teriam sido devidamente "obliterados".

"Já, já…", responde, quase em coro, o grupo. Mas, porque a famigerada natureza do grunho, além de pérfida é também refractária à inteligência, não evita o riso velhaco que celebra o êxito dos burlões. Demasiado audível, porém. Desconfiado, dali a pouco o revisor torna à questão, mas agora com mais disponibilidade.

– Ó chefe, a gente já disse que sim! – replica um dos grunhos, mostrando-se algo agastado com a impertinência do revisor, o mesmo que ainda há pouco era apenas um "gajo trengo cumó caralho". Imperturbável face à hostilidade grupal, exige ver a senha de viagem. De todos.

No silêncio que se abate de imediato, é quase audível a engrenagem, preguiçosa pela falta de uso, do raciocínio grunho em desespero. Surpreendidos pela solicitação formulada nos termos sucintos e vigorosos dos interrogatórios marciais, os grunhos ruborizam primeiro, trocam olhares inquisitivos e aterrados depois, empalidecem um pouco e confessam por fim:

– Não temos, chefe.

O "chefe", incapaz de reprimir o triunfo que aflora a comissura dos lábios, começa a debitar, no tom monocórdico das prédicas dominicais entranhadas no catolicismo rural, as "penalidades previstas para a infracção de viajar sem o título de transporte", termo que pretende traduzir o prosaico "bilhete", mas facilmente adaptável à guia de marcha de um vagão cheio de equídeos, no espírito do "Simplex" governamental.

Os grunhos, por seu turno, nem sequer tentam dissimular o fastio imenso de que são acometidos – bocejam, afagam os genitais, prescrutam a noite pela janela, repõem os auscultadores nas orelhas, ignoram o "chefe" e o seu zelo replicante de funcionário exemplar. Até que, no termo da exposição dele, surge a "coima de 50 euros".

– Foda-se! 50 euros?!? Oi, oi ,oi … Isso é graveto c'mó caralho, meu!... Mas não tenho dinheiro nenhum… E agora?

– Agora saem em Ermesinde. Senão, serei obrigado a chamar a GNR, que vos levará para o posto e, a partir daí, deixa de ser um problema meu… – informa, diligente e satisfeito, o revisor.

O montante deixa os grunhos mortificados. Algures, nos meandros despovoados daqueles cérebros sedentários, aflora uma luzinha, mortiça e trémula, indiciando perigo iminente. A irreverência ofensiva de há instantes dilui-se no pânico do grupo, que se afunda nos bancos do comboio amarelo enquanto o revisor se agiganta no auge da sua autoridade.

– Ó chefe, veja lá, q'a gente não tem guito, a malta foi assaltada no Porto, e este é o último comboio para casa – implora um, encenando sobrancelhas de Pietà, ameaçando genuflectir ali mesmo, no meio da coxia, e chorar a baba e ranho dos inocentes sujeitos à perfídia do destino.

O revisor mira-o, num longo instante que deixa o grupo congelado. O homenzinho na farda cinzenta prolonga a sua mudez e o sofrimento dos grunhos suspensos da sua decisão; desfruta, enfim, do pouco poder que as insígnias da CP lhe conferem. Sem elas, será pouco; ali, pode e manda.

– Para onde vão? – diz, acalentando a esperança de um gesto perdulário a que se agarra o grupo como náufragos a (meio) caminho das Canárias.

– Para Vizela – declara um dos grunhos, cujo ascendente sobre os demais é notório na espessura dos bíceps.

– Então é assim: se pagarem os bilhetes, desta vez a coisa passa; senão, têm que me entregar o BI.

E partiu para outra zona do comboio amarelo, deixando os grunhos a ponderar, num tropel de opiniões diversas, anarquia bruta e ignorância vasta – "que merda é essa de BI, meu?" –, a proposta do revisor.

Aquele regressa, no mesmo passo eficiente, para se inteirar da decisão. A ansiedade tomou, entretanto, conta de todos os passageiros, a maioria grata pelo episódio redentor que sustentará doutas considerações sobre a imoralidade das sociedades contemporâneas, claramente condenadas à barbárie por culpa da juventude que já nada respeita, e a minoria apenas divertida com o embaraço dos grunhos. Inflacionado pela ausência de pecúlio capaz de pagar um único bilhete, ainda assim garimpado a custo nos bolsos avaros das bermudas.

– Então, tenho muita pena, mas vou ter que vos multar. Os bilhetes de identidade, por favor – sentencia o revisor, máscara sem expressão imune aos apelos dos grunhos que multiplicam atenuantes. Debalde.

Um dos grunhos, porém, alega não ter BI. Nem carta de condução. Nem passaporte. Nada que o identifique.

– Então terá que me dar os seus elementos.

– Qu'elementos?

- A morada completa e número de telefone.

– Só isso?

– Só isso.

– Tá bem, prontos.

Anotados os "elementos" num bloco timbrado, o revisor abala dali, tornando aos seus afazeres. O grupo troca impressões sobre a ocorrência, especula sobre os efeitos que poderá ter nos cadastros respectivos, as possibilidades de furtar a multa na caixa de correio familiar, os meios susceptíveis de colectar 50 euros dispensando a improvável generosidade paterna. E, enquanto se entrega a semelhantes considerações, apenas um dos grunhos se abstém de comentários, e chega, até, a parecer satisfeito. O que não passa desapercebido aos grunhos parlamentares:

– Que foi, caralho? O filho da puta do 'pica' fodeu-nos à grande e tu 'inda gozas? Não deves ser bem suficiente dos cornos…

– Ná, a cena é que o gajo mamou os 'elementos' marados que lhe dei.

Reinação total. Exultam os grunhos com a estultícia do outro – "comeste o cabrão, man, comeste o gajo todo" –, e já se posta, de novo, o revisor presumivelmente deglutido nas cercanias daquele arraial.

– Desculpe, mas pedia-lhe que repetisse os seus elementos, por favor – diz a farda cinza, dirigindo-se ao grunho predador, reputado canibal de ferroviários.

– Ó chefe, foda-se, outra vez? – exclama, a voz embargada por um engulho de aflição.

– Se fachavor – replica o outro, impositivo.

Para infortúnio do grunho enganador, a memória era-lhe demasiado volátil para abarcar o questionário, e torna-se desastrosa quando é instado a conferir o contacto telefónico.

– O seu telemóvel é TMN, Telecel ou Optimus?

– Bom, é… é… 91…

– 91?!? Mas então não era o 964?…

– Ora, foda-se, nem telemóvel tenho, chefe! – confessa, já no limiar do desespero suicida, o grunho sujeito à confirmação.

O "chefe", cuja mãe recuperara subitamente a dignidade e, quiçá, a virgindade na consideração dos grunhos, guarda o bloco de anotações com gestos estudados, numa lentidão exasperante, concluindo:

– Acabou de perder a sua última oportunidade!

Oh, ignomínia. E Vizela já ali tão perto, e o apeadeiro já a seguir. E era. Por isso saíram, os grunhos, cabisbaixos, humilhados pelo homenzinho de farda cinzenta que agora percorre a coxia com as costas muito direitas, como se tivesse engolido um garfo ou esquecido de tirar o cabide onde pendura a camisa. Passeia-se como o monarca guerreiro que regressa de uma campanha difícil, mas bem sucedida, que terá garantido a integridade fronteiriça ao seu império e a glória da coroa.

Na noite seguinte, quando o comboio amarelo parou na estação de Vizela pelas 22.46 horas, aguardava-o uma turba de meliantes adolescentes em bermudas surradas e chapéus de basebol. Aos gritos, exigiam a presença do revisor cuja mãe tornara à prostituição desvairada das ninfomaníacas, manifestando vontade de comê-lo, outra vez, mas no sentido figurado dos sodomitas, e depois de amaciado ao soco, cabeçadas e pontapés, entre outras propostas, mais ou menos sanguinolentas, mas igualmente pouco saudáveis.

Os grunhos enxovalhados na véspera haviam convocado a tribo toda – e Vizela constitui, aparentemente, ecossistema fértil em grunhos – para consumar a vingança que tinham jurado entredentes, esquecendo, como é timbre dos grunhos, que não há revisores residentes no comboio amarelo. Frustrada a empresa, a embaixada de grunhos exprime a raiva no dorso do comboio amarelo, bate nos vidros, dá pinotes e piruetas, aos urros, numa coreografia asinina estridulante.

E, quando o comboio amarelo retoma o percurso, ocorre que o léxico burocrático tem as suas razões. Metidos numa carruagem com manjedoura, os grunhos deveriam ter direito a "título de transporte". A guia de marcha. Gratuita. Rumo a um estábulo qualquer.