2 de setembro de 2006

Beijos suicidas



Atirou-se. Mesmo. Atirou-se assim como os suicidas livres de todo o peso. Atirou-se. Mas atirou-se para a vida. No cais de embarque da linha 6, ela atirou-se, saída do Intercidades que acabava de chegar, para os braços dele, tão ansiosos como ela, desse amplexo que lhes resgata a saudade. Ele que esperava, alheio ao bulício da estação, há demasiado tempo pelo comboio que, chegado à tabela, enfermava de um atraso enorme na figura de um único passageiro: ela, que se atirou nos braços dele como os suicidas.

E como eles estaria livre de todo o peso. E tão leve seria que, enlaçando os braços no pescoço dele, cruzando-lhe as pernas nas espáduas dele, ele não acusou esforço, antes se ajeitou num longo beijo, nunca demasiado longo, mas tão longo como a viagem desse comboio outro que a levou, e desse comboio aqueloutro, este que a trouxe finalmente.

Um beijo só não chegou para repor o curso do Mundo. Por mais longo que fosse, faltaria sempre outro para obliterar a distância, iludir a espera. Por isso trocam novo beijo, mudam a posição e mantém as bocas unidas. Reposicionam-se, ensaiam tangos mudos, contorcem os corpos enlaçados como ginastas olímpicos no limbo da sua paixão. E beijam-se. Os comboios passam por Campanhã, as pessoas passam por Campanhã, o tempo passa por Campanhã, mas não por eles que, num cais de embarque em Campanhã, estão sós, trocando beijos. Longos.

Não há qualquer fotojornalista em Campanhã que imortalize esse beijo mais iconográfico, certamente, que aqueloutro do marinheiro em Times Square, congelado por Eisenstaedt nas páginas da Life. Ou ainda esse outro que Doisneau vislumbrou numa esplanada de Paris. Não há.

Mas há o casal que troca beijos longos.

E aquele passageiro que o observa de longe, nostálgico de beijos assim. Longos. Como se não houvesse mais ninguém. Como se não houvesse amanhã. Um beijo com a intensidade dos beijos de despedida dos suicidas que renegam o convite da morte no abraço da pessoa amada.

2 comentários:

jpcoutinho disse...

dito assim nem é preciso fotojornalista ;)

Leonor Paiva Watson disse...

Depois de ler este teu post fui reler "A Invenção do Amor...",de Daniel Filipe.

Sophia