12 de outubro de 2007

O Andarilho de Cronos


Foi há pouco mais de um ano, por esta altura, numa luminosa manhã, lixiviada pelo Sol horizontal que prenuncia o estertor da canícula. Nesse dia radioso, em que o Outono se fez anunciar pela luz quebrada e rasteira, rompendo a densa névoa matinal, a sonolenta harmonia da caterva embarcada foi acometida de um colapso, abrupto, no apeadeiro de Pereirinhas.


O topónimo, não obstante diminutivo, não faz jus à minudência do brejo, inscrito na ferrovia como um furúnculo reincidente que o hábito tornou inócuo ao portador. Na verdade, a sua existência pouco razoável deve-se à generosidade dos antigos, primeiro, e, mais recentemente, à reivindicação do povo local, insensível ao argumentário contabilístico da CP e ao combate do défice orçamental. Por ocasião da reforma do percurso, ameaçou levantar carris e refundar a Patuleia com gritos de ira, numa espécie de jihad laica e tribal, caso o comboio amarelo não travasse ali a marcha pelo menos três vezes por dia.


Numa deferência mais covarde do que piedosa face ao risco terrorista, cujo potencial avulta no vandalismo pictórico que gangrena o material não circulante entre Porto e Guimarães, o comboio amarelo lá começou a estacionar, cumprindo o castigo da tripla humilhação quotidiana. Queda-se por uns instantes, exposto como um troféu, rendendo preito à fúria da populaça, resfolega impaciência, destila azedume, e parte. Quase sempre tão vazio como à chegada.


[Agora, pára sempre ali].

Naquela manhã, porém, havia duas mulheres na plataforma, geralmente tão deserta que nem os broncos do spray investem nas suas paredes, cônscios da futilidade do crime exibicionista por manifesta ausência de público. Com o aproximar do bólide amarelo, as duas silhuetas fundiram-se num amplexo estreitíssimo, que não esmoreceu quando o comboio parou e que permaneceu, quiçá mais apertado ainda, quando as portas automáticas abriram, escancaradas no sorriso sardónico de boas-vindas.


O revisor assomou à franquia com o bocejo próprio das rotinas e varreu, num relance de largo treino, o cais desértico de Pereirinhas, enxertado entre uma fábrica têxtil agonizante, sobranceira ao rio Ave, quimicamente esterilizado, e as hortas clandestinas de certo remedeio familiar.


Embora zeloso como os eunucos dos haréns de Suleimão, o funcionário deixou que as duas mulheres, imóveis naquele abraço apertadíssimo, esgotassem o cronómetro das portas automáticas. Fecharam-se, leais ao mecanismo temporizador, de fabrico alemão; reabriram de imediato, contrariadas no seu rigor teutónico pelo revisor, sensível àquele manifesto público de ternura, cuja raridade obriga à contemplação.


As idades desiguais sugeriam-nas mãe e filha. O rosto da mais nova, exposto às vidraças do comboio e tão crispado como as suas mãos, fincadas nas costas maternas, deixava perceber que aquela não seria uma despedida banal.


Naquele abraço esmagador, que lhes convocava todos os sentidos, faltava a displicência própria das ausências curtas, a leveza permitida pela garantia do reencontro algures e para breve, sem precisão de agenda nem cruzes no calendário.


Tornaram a fechar, brutas, as portas do comboio. E de novo abriram a mando do revisor, cujo pudor, vencido pelo dever, se eclipsou algures na cinza da farda.


- Vamos lá! Vamos lá que não há tempo a perder!...


Sacrílego, o abrupto reparo estilhaça o instante de vera religiosidade no improvável sacrário de Pereirinhas.


É a mãe que toma a iniciativa de recolher os destroços da magia e volver ao Mundo tangível. Suave, desprende-se do abraço da filha que chora baixinho – brotando gritos mudos, como os dos condenados nas sessões de quimioterapia, dos olhos fechados – e toca-lhe o rosto contrito num afago breve. Um gesto impotente, mais de fuga do que de consolo.


Afasta-se dois passos, a mais nova. Nota-se, na mandíbula tensa, no latejar da carótida saliente, o supremo esforço por serenar e volver à discrição em que terá sido educada. Há muito, por certo, numa época em que a honra seria mais respeitável do que a liquidez financeira da boçalidade madeirense…


A idosa ainda se demora mais um pouco, costas curvas num debruçamento e voltadas para o comboio amarelo. Nele, o revisor tamborila a impaciência e franze o sobrolho. E, nessa demora que tanto o aflige, nem repara que se vão calando os passageiros, nem tampouco nas razões por que emudecem.


Nota-o tarde de mais, quando a senhora – tão frágil, afinal – vence em passinhos muito curtos, apoiada num andarilho de alumínio, o par de metros que a separam da composição. Diminuto, tal trajecto; e, no entanto, Moisés, quiçá mais velho do que a velha do andarilho, terá sofrido menos, e sido mais lesto, na travessia do Mar Vermelho.


Tlac… e uma pausa; tlac… e nova pausa; tlac… e ainda outra pausa, e mais outra, senão tantas mais. Está exausta, a velha do andarilho. Cansada de tantas pausas, como as das procissões fúnebres.


Antes de entrar, pára novamente, defronte ao revisor. A farda não se mexe, transida de vergonha. A voz do funcionário, tão autoritária ainda há pouco, com o peso de baixo profundo, não lhe traz a desculpa que acaba por apenas ensaiar, abortada pelo sorriso cansado, mas afável, da senhora. Perdoa-o, num sussurro tépido e maternal, acostumada a sossegar rapazinhos apanhados em falta.


- Não faz mal, não se preocupe. Eu entendo que não queira fazer esperar estas pessoas todas… E tem horários a cumprir, não é?...


O revisor, de bibe e fralda, íris colada no chão, meneia a cabeça – que sim, pois é a vida dele, tem de ser, coiso e tal -, e dá ordem de marcha ao comboio amarelo. Ah, como gostaria de se livrar daquela gravata que o sufoca de repente… Não se livra, nem do acessório nem do odioso que já lhe pesa e o deixa contrito.


É incapaz de encarar a idosa, assim como aos demais passageiros, cujos olhos acusadores pressente cravados na nuca, degolando-o como a um criminoso infecto e sem remissão. "Grandessíssimo filho da puta, que não respeita nada nem ninguém", julgarão alguns, talvez até aqueles que se levantam, inclusive entre a estudantada, para ceder o lugar à velha do andarilho.


Ela abanca no assento imediato, próximo da porta, prevenindo a queda provável nas ondulações da ferrovia. Recosta o corpo, extenuado por tão pouco, e desce as pálpebras quase translúcidas, cerzidas por veias muito finas. Já não vê o derradeiro aceno da filha que, sozinha no cais, morde ainda o choro.


Adivinha-o, não quer confirmá-lo nem alongar mais o martírio daquele adeus. Tem a idade e a sabedoria dos pragmáticos, a mulher do andarilho. O que lhe falta é saúde. E tempo. Sobeja-lhe a paciência dos penitentes.


Mas não muita. Chegados a S. Bento, quando a chusma de passageiros se precipita para fora do comboio e se espalha pela gare, a velha do andarilho retoma a marcha, lenta e de compasso difícil, para fora da carruagem. O revisor aguarda-a, cavalheiro, à porta. Em sentido. E, à passagem da senhora, balbucia novo pedido de desculpas, solicita a indulgência da mulher. E ela, com a firmeza dos forcados, replica:


- Deixe lá, que um dia saberá o que é não ter tempo a perder. Será no momento em que deixar de se importar com a estupidez e a má-educação dos outros.

13 de junho de 2007

Homicídio Colectivo no Apeadeiro de Rio Tinto


Não foi notícia. Em lado algum.

Nem sequer nos pasquins especialistas na exposição de cadáveres ulcerados pelos marginais em desespero. Esses infelizes que são tão miseráveis, afinal, como a casta dos jornalistas amanuenses que, presos ao teclado, ligados aos computadores para benefício dos dividendos bolsistas, parecem escribas em sessões esclavagistas de hemodiálise. Só que, em vez da insuficiência renal, padecem do assédio laboral autorizado pela cartilha do neoliberalismo em ascensão.

De modo que agravam dioptrias, os sicários da escrita emboscados nas redacções, para vender papel reciclado cheio de receitas sushi e gadgets tão fashion quanto inúteis… Como os jornais eles próprios, despovoados de interrogações e perplexidade. Papel niilista e amoral polvilhado de cosmética gráfica e brindes promocionais sem préstimo. Um nojo acéfalo com lantejoulas. Como as putas finas e os concursos da TVI.

Não espanta, por isso, que até esses matutinos, que titulam necrologia pornográfica para acalentar a ilusão de bondade e decência às velhas pensionistas e aos desempregados, tenham ignorado a ocorrência. Nada reportaram. Nem uma linha. Da rádio, afonia total; na televisão, cegueira absoluta. Nada em lado nenhum. Como se nunca tivesse acontecido.

Mas aconteceu, numa manhã de sexta-feira, em Abril último. E foi terrível.

No apeadeiro de Rio Tinto, excrescência de Gondomar já por si macabra, houve um homicídio. Colectivo. Participado por quase todos os passageiros do comboio amarelo, em que cada qual, revelando a bestialidade do animal humano a bordo de uma carruagem saturada, matou mais um bocadinho a vítima. Com a mesma determinação dos algozes de César, mas sem aquela magnificência dramática com que Shakespeare reciclou o crime dos tribunos invejosos nos Idos de Março. Isso mudaria tudo. Assim como a marmórea escadaria senatorial em vez do betão cariado daquele abcesso gondomarense.

Se não romana, a tragédia poderia ser, até, grega — havia basto coro e espécimes gay, ansiosos por ensinar criancinhas, a bordo!... Mas não; embora latina, foi portuguesa. E suburbana. O que altera tudo. Para pior! Principalmente quando sobreveio a vingança que redundou no massacre furioso dos assassinos. Um banho de sangue! E, no entanto, nem uma gota verteu para o domínio público…



Visto à distância, o sinistro era previsível na atmosfera tensa do comboio amarelo, sobrelotado muito para lá do habitual, quando a enchente ocorre apenas em Ermesinde. Ora, nesse dia aziago, já se perfilavam viajantes apeados em Santo Tirso. E o rumor das múltiplas conversas, que usa evocar arrulho sereno e cordato, ocasionalmente perturbado pelo trino de uma gargalhada átona ou a melodia pimba de um telemóvel incontinente, derivou para o cacarejo doentio dos aviários industriais.

Para desespero de um poeta esforçado — cuja musa frigidíssima lhe negava rimas e versos desde que se lançara na empresa literária —, incapaz de se abstrair do contexto galináceo. Provavelmente, nem Pessoa o lograria, ainda que encharcado de absinto, caso tivesse por estreita companhia três enfermeiras histéricas exalando perfumes ofensivos de encomenda postal, ou duas universitárias, castas por obrigação, debatendo com denodado empenho o contributo da electrónica japonesa para o cálculo algorítmico.

Pobre poeta, já tão dorido pelo toque furtivo dos joelhos da morena divinal abancada no lugar da frente. Mulher estupenda, mas demasiado absorta na consulta de um guia turístico da República Dominicana — que sublinha amiúde, com uma sensualidade distraída, alheia à própria ideia de sedução —, para notar o calor tropical que arrepia os genitais do putativo artista. Ao qual sobeja refrigério após a morena desertar em São Romão, levando os joelhos perturbadores com ela — mais os lábios grossos, o peito redondo e a firmeza do cu…

Ficou o poeta boquiaberto, com a vista esbugalhada, presa à porta que lhe furtou notória alegria. Pobre bacalhau solitário e diminuído, à deriva num aquário de alforrecas estridulantes. "Puta que pariu!" — não tem sorte nenhuma, tal poeta submarino. Intransigente, não desiste: volve à escrita, oferecendo a alma e os órgãos moles à musa adúltera e remissiva com abnegação de forcado em noite de alternativa.

Sem êxito, porém, que a orbe da empiria daquele poeta malfadado, movido pela ambição de posteridade no ofício incerto das palavras, situa-se num universo em crise. Libidinal. E, da teimosia sem vocação lírica, resulta a oca meditação, o ajuste inglório da métrica com a raiva de um corno desenganado, batendo sílabas em brasa numa bigorna de fomes e rancores. Para evitar suicidar alguém…

De modo que o patético poeta, entrincheirado no comboio amarelo, persiste naquela espécie de grafomania terapêutica.

Prolixo em superlativos desnecessários e rimas inverosímeis, organiza estrofes com tremuras de virgem a caminho do tálamo, cheio de cuidados mil na selecção do verbo. Mas acaba por se perder, como é de seu costume, nas encruzilhadas da composição, naufragando na paralogia metafórica que hipoteca o nexo de versos rudimentares, prenhes de confessionalismo sórdido, misantropia e frustração adolescente. E apesar do estóico investimento, a poesia propriamente dita não há meio de acontecer…

Mas acontece uma outra espécie de horror. Sinalizado por um grito perfurante que lhe remete, com o susto, o ensaio de trovas para o intestino, enquanto abafa a fervura das conversas em ebulição. "Puta que pariu"! — balbucia o nervoso poeta.

Ao seu lado, uma das castas universitárias tem, na paralisia do rosto, uma expressão de pavor que humilharia Münch. E sacode a colega num frenesim de urgência, para que ela veja, para que assista. Para que testemunhe depois, enfim, o tenebroso episódio, quando o reportar na cantina da faculdade aos outros, aos madraços a que se insinua há tanto. Debalde — nenhum a repara como deseja, por altura da Queima das Fitas, numa degustação alarve, com temperos ilícitos e cerveja quente (o preservativo é opcional).

A excitação da parelha académica alastra, virulenta como o catarro nas homilias, pelas carruagens atestadas. Num ápice, os passageiros contaminados precipitam-se para as janelas da composição. Numa delas, a vidraça espelha o semblante, contraído pela ruminância de impropérios e fúrias, do poeta de má sorte. Com tendência para piorar a desdita.

A primeira vaga de curiosos, que da coxia se debruça sobre os bancos num assalto mórbido, esmaga-lhe os joanetes; a segunda, levantada dos assentos num tropel, precipita-se com avidez sobre a primeira e empurra três matronas. Desamparadas, abatem-se sobre o pobre poeta.

— Puta que pariu as velhas! — rosna ele, impotente, comprimido por halitoses e adiposidades, soterrado nos escombros de sonetos e redondilhas, espumando oximoros e metonímias. E, tomando por genuína a dor que era suposto apenas fingir, escapa-lhe o fulano que, estirado no cais de Rio Tinto, congrega as atenções do povo.

É velho, o infeliz: tem o crânio varrido por severa tonsura, o rosto lavrado pelas térmitas que parasitam os dias gastos… Jaz aos pés dos rapazinhos fardados que, embora se reclamem "sempre alertas", dado o tráfego matinal de glândulas mamárias naquele apeadeiro, só deram por ele já caído. Amortalhado por uma gabardina beige, extemporânea e com mais nódoas que botões, o indivíduo tombou sem alarde nem aflição. Desabou assim, discreto como os humildes, que solicitam o perdão póstumo aos carrascos em falsas notas de suicídio altruísta.

Os jovens despegaram finalmente dos mamilos primaveris desenhados em camisolas de Lycra e cumpriram os preceitos do escutismo, colocando o homem em posição lateral de segurança. E, enquanto um deles convocava socorro capaz pelo telemóvel, na carruagem troou uma voz poderosa, cujo timbre a deu por acostumada ao comando.

— Anda por aqui algum médico? — indagou, autoritário, o sujeito maciço que trazia nas pupilas, ainda, o deslumbramento solar da África colonial e, na tremura das mãos largas, os mil horrores do capim ultramarino. O silêncio devolveu-o à suja realidade suburbana, à qual nenhum curandeiro sujeitaria a nívea majestade da sua bata.

O mutismo geral prolongou-se pelo trio de enfermeiras, absorto no espectáculo e esquecido do ofício que, de qualquer modo, jamais exerceria com gratuita piedade cristã. Por temer represálias da Ordem e do Sindicato, corporações reconhecidamente laicas.

Do âmago daquela massa compacta grudada nas janelas, emerge outra voz. Também máscula, mas nasalada e canalha. Velhaca, até. Como a dos campeões da sueca que, pelos feriados e dias santos, averbam bicicletas e torradeiras nos torneios das associações recreativas e culturais lá da freguesia. Grémios que, tão escassos de subsídios como de imaginação, esgotam funções na sorte do baralho.

— O melhor é arranjar cangalheiro para o gajo…

A sugestão verbaliza as suspeitas da maioria, cada vez mais convicta do colapso fatal do homem derrubado. Muitos, no lodo dos seus íntimos, desejariam até assistir ao último estertor, lamentando apenas a discrição do putativo defunto nesse derradeiro gesto, que a televisão torna sempre tão emotivo e brilhante. Ali, a realidade é muito mais aborrecida. E baça.

No exterior do comboio, assoma aos lábios do sujeito inanimado um ponto vermelho. Uma bolinha apenas, quase imperceptível que, dali a nada, já mais volumosa, se liquefaz, riscando-lhe o papiro do rosto. Notando o rubro traço de hemoglobina, uma jovem de nórdica compleição — pernas fortes, seios largos e loiro genuíno — leva as mãos à boca fina para reprimir o grito que se escapa:

— Ai, coitadinho, que ele morre mesmo!

São tão dramáticas, as loiras…; mas, piores do que elas, são as morenas suburbanas, cujo sonho é a madeixa definitiva, copiada com zelo excessivo.

— Aquilo é como o meu cunhado, quando se lh’arrebentou o câncaro nos pulmões. Vertia sangue que nunca mais parava. Saía às postas, parecia que ia ficar todo escoado… Pois não aguentou uma semana no hospital! E ainda bem que Deus o levou, que ele já só gritava noite e dia, moído pelas dores, que as injecções já não lhe pegavam nem faziam nada.

Baixinha e anafada, a falsa loira cativa as atenções. Jubilosa, entesa o corpo, curto e largo, moldado pelo espartilho do avental florido que só tira no passeio à cidade, e projecta a noz do queixo para se fazer medrar no seio da multidão. Estica a perna grossa, que se imagina enxertada em pantufas de felpo, encardido como as espáduas de cavalos cor-de-rosa que ninguém escova nem lava, e conclui o relato do calvário familiar.

— A minha irmã foi uma santa para ele, mas, p’ró fim, já não podia mais com aquilo, e estava a dar em maluca.

A suposta canonização da viúva, plenamente justificada no seu alívio, liberta uma enxurrada de episódios sanguinolentos e cenas escabrosas na memória vivíssima, fértil de pormenores, das falsas loiras empenhadas em sê-lo que seguem a bordo. Disputam o tumor mais maligno e fulminante, a complexidade de múltiplas cirurgias sofridas por familiares ou amigos, quando não elas próprias; evocam moléstias, pestes e bastas pandemias, reabrem úlceras e sugerem tromboses, esgrimem fármacos e mezinhas, prescrevem drogas e tisanas, e acabam por sepultar multidões inteiras nesse concurso do funesto a que se entregam com paixão de coveiro.

O debate convoca a maioria dos passageiros daquele comboio matinal, ainda amarelo, mas reconvertido numa assembleia de parlamentares necrófilos. O entusiasmo é tal que logo esquecem a causa das suas queixas e especulações. E ninguém escuta uma das enfermeiras que avança o diagnóstico possível e mais provável:

— Deve ser epiléptico, o homem. Trincou a língua.

As duas colegas anuíram, regressando ao encosto dos assentos.

— Pela quantidade de sangue que deitou, vai precisar de ser cosido… — alvitra uma delas. As outras concordam.

Retoma o curso o comboio, deixando para trás os escuteiros e o homem que logrou, na mole de suburbanos excitados e algo tontos pelas oscilações da composição, uma singular unanimidade quanto ao seu destino:

— Morreu, ouçam o que vos digo, está morto. De certeza! Já não bule — garante uma senhora, baixinha e muito seca de carnes, com perfil de periquito. O seu aprumo esforçado, que se articula em rendas e bordados, o alinho do cabelo alvidúlcido e a falta de argola no anelar dão-na por solteira antiquíssima.

Embora educada e serena, adivinha-se nela a fome imensa por nacos de conversa fútil e sexo bruto na cama de dossel onde dorme sozinha; presume-se nela a companhia — em três assoalhadas impolutas, povoadas por objectos decorativos que sublimam os excessos do barroco e cheias de fotografias desmaiadas, em molduras de purpurina, dos antepassados doravante sem descendentes — de um gato, prisioneiro e quase cego pela idade.

— Foi um ataque fulminante! — adianta a estudante que cultiva as etiquetas na roupa e os adereços no corpo. Espeta motivos tribais de metal no nariz, no sobrolho e no lábio inferior; além das orelhas, cujo lóbulo distendido acusa a sobrecarga de adornos.

— Um tumor, um tumor — insiste a falsa loira, especialista em questões oncológicas por via da irmã beatificada (entretanto casada de novo com um retornado que a mói de pancada).

— Ná, magro como estava, pior que um cão vadio, se calhar era tuberculoso. Vinha no outro dia no jornal que o Porto é onde há mais casos no país todo…

— A culpa é do Governo, que está cheio de comedores e anda p’raí a fechar hospitais a torto e a direito, para os privados terem clientela. E quem não tiver dinheiro que se lixe.

Entre o aquecimento global e a guerra no Iraque, o repolho transgénico e os escândalos púbicos de Britney Spears, aquela assembleia não mais deixou, até Campanhã, de acrescentar causas para a morte que tinha por garantida em Rio Tinto. Cada qual foi escolhendo, de entre as inúmeras modalidades de homicídio que a fragilidade humana autoriza, a mais conveniente ao exorcismo dos próprios fantasmas ou, tão somente, às exigências narrativas do auditório, ávido de desgraças alheias, na displicência do emprego, na lassidão do café ou no recato do lar. Um assassinato muito completo, o do pobre velho encardido, pleno de variantes e de primores que nenhum psicanalista ambicioso, nem qualquer verdugo diligente, desdenharia estudar.

Muito menos o poeta de má fortuna e parca vocação que se arrasta, tão amarrotado como as suas estrofes, aturdido e raivoso, para fora do comboio amarelo pousado no cais n.º 2 de Campanhã. Ao rol de sevícias que os passageiros foram compilando na sua alegre troca de impressões, acrescenta umas quantas torturas e maleitas, cancerígenas ou degenerativas, igualmente fatais e dolorosas.

Na escada rolante que desagua no edifício de azulejos azuis, identifica claramente os utentes hematófilos, e crava-lhes nas costas os olhos em alvo. Deles partem punhais imaginários, lâminas de fúria irracional que mondam escalpes a mulheres suburbanas — loiros quase todos —, esquartejam membros flácidos e adiposos a matriarcas de clãs operários, arrancam piercings e brincos às carnes firmes de jovens tatuadas, perfuram os úteros secos de virgens involuntárias e de velhas mirradas.

Caminha, o poeta genocida e inclemente, com o passo firme dos campeões, liberto de toda a gravidade, pela miragem de uma estação rubra de sangue fresco; a plataforma é um pantanal de cadáveres retalhados e moribundos em agonia, ignorados pelo trio de enfermeiras que, se não tivesse já sucumbido a mutilações várias, não ousaria desafiar as regras burocratas do seu mester.

Sorri, agora, o poeta, no êxtase da sua obra macabra, furtando o génio literário de Wilfred Owen à vista dos rapazinhos gaseados nas trincheiras onde sepultaram impérios; ébrio com semelhante êxito, descobre-se no alto da escadaria que desemboca no cais principal da estação a declamar, à semelhança de Nero face às chamas que devoram Roma, versos histriónicos em louvor do massacre.

E nisto é repreendido pelo negreiro de serviço pelo notório atraso à sessão de hemodiálise desse dia nefasto, em que um homem quase morria no apeadeiro de Rio Tinto e os jornais nada reportaram. Puta que os pariu.

22 de março de 2007

Despojos de um Freak Imperial


O derradeiro comboio para Guimarães seguiu ontem particularmente vazio de almas. Se poucas eram quando partiu da Estação de S. Bento, também ela varrida pela fria desolação dos lugares inabitados, poucas mais seriam ao deixar Campanhã. E, dali em diante, o declínio numérico foi tão consistente como a evolução do orçamento estatal — de erro em engano, até à ruína total.

Não chegou, contudo, à nulidade absoluta proposta implicitamente por um dos passageiros nocturnos. Excepto pela sua evidência material que o bilhete cauciona, à semelhança de um recibo pelo aluguer provisório de um canto na carruagem, nada nele sugeria uma essência para lá da forma, uma centelha espiritual alumiando a pura orgânica. Uma alma, enfim, que pudesse habitar aquela mudez intransigente, arrancar aquele corpo da quietude obstinada do rigor mortis, como um cadáver que logra o milagre de respirar sem dar por isso. Um vulto de tal forma inóquo que se tornou excepcional.

Não se tratava de mais um desses utentes de quotidiana frequência que, no termo do expediente laboral, vencido como a expiação do pecado de nascer sem a bênção do apelido, título ou fortuna, procuram o descanso num sono forçado; não pertence a essa estirpe incongruente que ressona fantasmas e fantasias entre o sobressalto de cada apeadeiro até acordar no destino. Não, não é desses inglórios garimpeiros, não se confunde com eles.

Porque o seu tormento, ainda que infinitamente maior, é também a sua defesa, quiçá a única que lhe resta; a sua garantia de sobrevivência ao vácuo que vai enchendo a carruagem é a renuncia. A ele próprio. E aos outros. Ao Mundo.

A sua quietude pétrea, configurando o simulacro carnal do metalino pensador gerado por Rodin, implora pela indiferença alheia. O apelo contido na letargia aparente dos sentidos prolonga-se pela roupagem anódina, sem corte nem cor dignos de reparo. Obrigado a estar, recusa-se a ser, no paradoxo de uma passividade actuante em prol do seu desaparecimento.

Dir-se-ia um falhado enquanto indivíduo, um despojo orgânico da venalidade e da usura que hoje campeiam livres, senão aclamadas; um espectro passeando a contragosto pela via-férrea na mais profunda solidão e abandono. Uma negação, apenas.

Pelo menos, é isso que conclui o outro passageiro sobrante no comboio amarelo (os funcionários não contam, por serem meras peças do mecanismo de transporte, nem as duas atletas brasileiras da equipa de voleibol feminino da Trofa, por nelas e para elas tudo ser corpo…). O observador resistente à debandada gradual intui, no silêncio do ocasional companheiro de viagem, o desamparo extremo; não vislumbra na treva do rosto esfíngico qualquer presença no termo da jornada, nenhum regaço, nenhum calor. Ninguém à espera.

E cogita o resistente se não será o figurante de um estranho ritual fúnebre, em que participa por funesto engano, reconhecendo na melancolia agónica do outro, no mutismo intransigente do outro, na ausência de um olhar, sequer, do outro, um daqueles homens que, sem a expectativa positiva no que há-de vir (seja o progresso rutilante da Ciência, seja um Messias andrajoso mas redentor) morrem duas vezes. Prosseguem sustentados por um ventilador oculto até que sobrevenha a finitude irreversível com o desmoronar do tronco cerebral, e é tudo.

Mas o passageiro que, na sua ilusão arrogante de superioridade moral e conforto social, começa a desenvolver certa compaixão pelo homem tornado cinza no brando crematório das consumições da vida, experimenta tremendo cagaço quando, subitamente, o objecto da sua piedosa comiseração — e descarada espionagem — abre um olho, um olho apenas, e finca nele a retina. Num movimento fugaz. Um arrepio de lume no borralho batido por uma aragem furtiva.

Na brevidade violentíssima desse contacto perverso, que o escava até ao âmago, o passageiro petulante compreende o equívoco das suas elaborações. Recorda a frase, sobejamente citada, da fotógrafa Diane Arbus quando resumia a sua paixão pelos freaks, essas personagens inquietantes por tão estranhas aos padrões da normalidade: "A maior parte das pessoas atravessam a vida receando ter uma experiência traumática. Os freaks já nasceram com o seu trauma. Já passaram o seu teste na vida. São aristocratas".

Aquele olhar não pretendeu senão isso: estabelecer definitivamente as diferenças abissais entre ele, que jaz por querer, mudo por querer, e os demais mortais, plebe rancorosa e vil que procura fugir do desamor. Nada é comparada com ele. No alto da sua recusa majestática da sociabilidade humana, é ele quem detém o poder, porque não carecendo de ser notado, também não lhe interessa notar. Só existe quem ele autorizar. Porque, como escreveu o poeta Ruy Belo, somos seres olhados, existindo apenas no olhar dos outros.

Quando desceu no apeadeiro de Covas, o passageiro pretensioso ia já arrependido de ter sido agraciado por aquele olhar que lhe devolveu a dependência e pequenez de um suburbano remediado.

2 de março de 2007

Tragicomédia Entre Apeadeiros + Duas Estações - I


Há precisamente quinze dias, um dos maiores mitos contemporâneos da ferrovia suburbana regressou ao convívio dos mortais que frequentam a linha Porto-Guimarães. Suspeita-se que, no Seu enfado infinito, Deus tenha inventado castigo assaz elaborado para a terrível e amarga revisora que, nessa sexta-feira aziaga, configurou uma espécie de Prometeu agrilhoado — mas sem chama inteligente nem irreverência altruísta. A senhora terá sido, presume-se, condenada não só à convivência com os desprezíveis passageiros, mas também a padecimentos vários e renovados ao longo da viagem prenhe de atribulações. Uma tragicomédia ambulante aos solavancos. Por dois euros.


O regresso da revisora estava, aliás, fadado ao desconchavo. Os sinais estavam ali, desde logo inscritos no fardamento extemporâneo dela, naquele uniforme branco de têxtil leve, susceptível de suavizar as mordidas estivais ainda tão longínquas, porém, no calendário da hibernação solar e dessa chuva abundante que tem riscado as vidraças da carruagem. Outro indício ocorreu com a falência da tecnologia substituta das velhas bilheteiras, aqueles cubículos forrados a bolor, horários gastos e cartazes rompidos que garantiam emprego aos funcionários indigentes e desaustinados de outrora (os actuais continuam indigentes, mas sorriem muito mais!).


A maquinaria enxertada na gare de S. Bento decidiu, numa manobra concertada, congelar todas as funções. Grevista zelosa, porém, assegurou os serviços mínimos através de um engenho apenas que, em breve, se revelou incapaz de corresponder à demanda gerada pelo acréscimo de passageiros aos fins-de-semana. Os anónimos rostos enfileirados entretanto, comungando o espanto e certo desespero positivista pela falência da mecânica, dissuadiram os mais relapsos. E aqueles, confiando na razoabilidade do argumento evidente, entraram na composição, esperando beneficiar de um serviço personalizado que fornecesse bilhete e, quiçá, desculpa pelo incómodo.


Debalde; pois se é sabido que as fardas usam anular os resquícios de humanidade, no caso da mítica revisora é lícito indagar se não terá nascido, num dia que orça para lá de meia centúria, já de farda posta… Ora, esses passageiros mais atrasados, se além de pontuais tivessem sido previdentes e consultado os anais daquele ramal, veriam que a senhora figura no imaginário colectivo precisamente pela insensibilidade asinina demonstrada amiúde, à qual deveu, aliás, a sua longa ausência. Por baixa. E por decreto da justiça popular.


Diga-se que a personagem, que terá sido recambiada da famigerada Linha de Sintra por exigência dos utentes cansados de tanta petulância aristocrática, segundo um passageiro de Ermesinde bem informado, já não despertava simpatia alguma. A repulsa devia-se aos exageros plásticos exibidos, cujas ressonâncias operáticas baralham, de algum modo, os sinais identitários do operariado que enche o comboio amarelo, violentando a consciência de classe dos passageiros. Pois que ela, embora operária também, ao contrário dos seus pares — que acalentam enfermidades menores para garantia de reforma antecipada e ostentam um mau gosto propagandístico no vestir, reclamando pelo custo de vida que o Governo jura nunca ter sido melhor —, demonstra profundo desprezo pelos brios e atavios do lumpen de onde saiu.


Tal revisora renega o paradigma original com a vasta cabeleira oxigenada, no figurino das idosas que buscam a fórmula da eternidade nas revistas de mundanidades; esgota boiões de estranha goma, rotulados por receitas ilegíveis anunciando a Terra do Nunca, para encher os regatos fundos do rosto que suplica a firmeza do botox; ostenta brincos de polímeros sintéticos sugerindo pérolas, enfeita de zircão os dedos longos, cuja cútis indemne os presume formatados para diamantes, safiras e rubis.


No cúmulo da desfaçatez, equilibra no limite nasal o derradeiro adereço que estabelece o abismo entre ela e o operariado viajante: os óculos graduados, cujo aro, dourado e minúsculo como o dos poetas, acciona o efeito simbólico que os outros tomam por ofensivo — acentua, por um lado, a sombra colorida nas pálpebras orladas por longas pestanas rímel; reivindica, por outro, uma difusa propensão intelectual alheia aos hábitos da malta que usa circular por ali.


Ora, a tais atributos algo vexatórios acresce o mau feitio permanente. É notória a falta de paciência para o semelhante em trânsito e que, não raro, recai sobre o povo mais idoso e menos educado nos benefícios da burocracia tecnológica da CP. É justo, porém, reconhecer-lhe a feição democrática, apesar de maniqueísta, na transversalidade da inclemência e brutalidade autoritária com que interpela os utentes. Para ela, todos são potenciais burlões e presumíveis borlistas. Sem direito a defesa nem indulto.


Na sua sanha persecutória, empreendida com o dogmatismo dos cruzados aos faltosos que não lhe merecem qualquer comiseração, nem sequer os pecadores cuja inimputabilidade é óbvia, a revisora averbou bastas multas e vastos ódios — a assinatura mensal está pouco legível? Multa de 50 euros; o bilhete foi tirado com o destino errado, ainda que sem prejuízo para a CP? Multa de 50 euros; as bilheteiras mecânicas não funcionam? Multa de 50 euros …e por aí fora, num extenso rosário de penalidades.


Mas, como não há mal que sempre dure, certo dia a revisora deparou com um casal de provecta idade, entrado em Caniços com destino ao Porto. Para exames clínicos, segundo fontes conhecedoras. Tratando-se de um apeadeiro, ambos poderiam solicitar o bilhete dentro do comboio amarelo e, dada a condição de reformados, evidente na locomoção custosa, no cabelo ralo e quebrado (embora penteado com desvelo), nos rostos tricotados e na pele manchada, pagar apenas metade do custo tabelado.


A revisora, porém, imbuída dessa ortodoxia que prenuncia a neurose, seguiu as regras, indiferente ao sorriso acolhedor do casal:


— Mostrem-me o cartão de aposentado ou o bilhete de identidade — reclamou, com secura desusada e reminiscências ditatoriais.


— Desculpe, mas é a primeira vez que nos pedem os documentos. Há algum problema? — indagou o homem, algo atónito pela rispidez da revisora.


Que retorquiu, ainda mais bruta, com a voz em brasa e uma indiferença ostensiva:


— Problema só se for o seu, que vai ter de pagar o bilhete inteiro ou sair do comboio.


Por força do hábito e do costume entranhados no país rural, tão afeiçoado ao plantio do Cerejeira e do Oliveira que vicejou por décadas, o velhote, embora abalado, acatou a réplica humilhante, e começou, até, a garimpar no bolso as moedas em falta. Sucede, porém, que na melhor tradição da resistência feminina à tirania prepotente, já a esposa, revigorada pela indignação que derrotou castelhanos em Aljubarrota e vincou a força popular nas ventas barbadas de Maria da Fonte, agarrava a farta juba da revisora, que arrastou pela coxia. A massa exultou com o episódio que envolveu a Polícia e tratamento clínico ao olho esgaçado da revisora, aconselhada a repouso total e caldos de galinha.


Vã terapia, como se provou nessa sexta-feira de má sorte.


(continua)

22 de fevereiro de 2007

Colóquios Substantivos


A poluição visual resultante do argumentário em torno da liberalização e da penalização da prática do aborto sob patrocínio estatal desapareceu do comboio amarelo na segunda-feira passada. Finalmente! Do debate sobraram apenas as manchetes dos diários gratuitos que pululam pelo veludo vermelho em que o povo abanca o cansaço, a espondilose cervical e as malditas varizes, gritando no papel de má qualidade: "Sim vence!!!". Ena… A titulação não especifica, porém, quem perde.


O que seria mau jornalismo caso a questão tivesse interessado a muitos para lá dos políticos que distraem as massas com matérias uterinas… Mas, concedendo que terá suscitado a atenção de alguma minoria de votantes, não foi, porém, a dos utentes do comboio amarelo. Porque mais do que nortenhos, os minhotos suburbanos que nele viajam, já esclarecidos nas prédicas dominicais e precavendo o futuro post mortem na graça do Senhor que tudo vê e julgará, ignoraram a campanha agressiva fomentada por um e outro lado da marquesa — com os fósseis do PCTP/MRPP a reciclarem cartazes do referendo de 1998, artesanais e nulos de ideias, colados no apeadeiro de Covas num óptimo exemplo de estupidez revolucionária fora de prazo…


Beatíficos, os nativos do verde Minho dispensaram a consulta de panfletos e preferiram o aconchego de amuletos consagrados (ou de fetos de gesso produzidos na China pelos mesmos operários famélicos que encerram fábricas no Vale do Ave e do Sousa) e as reflexões — quando não ameaças — dos púlpitos dominicais. E, mui cívicos, grafaram a cruz, no boletim entregue lá na Junta de Freguesia, com que abjuraram os homicidas de crianças lindas, altas e loiras, certamente; renegaram pelo voto os lacaios de Lúcifer disfarçados por gravatas rosa, coloração pueril que não logra suavizar esses assassinos de uma nova geração de génios em potência, e dedicaram-se, na sua certeza irredutível e muito cristã, a conversas bastante mais substantivas do que a vida e a morte de fetos indefesos e de mães infelizes.


Ele, veterano das andanças ferroviárias quase do tempo do carvão, após mirar de soslaio o pasquim "Metro", manuseado por desfastio pelas vagas de passageiros precedentes.


— Eu, peixe, gosto de sardinhas, mas só se me apetecer!


declarou no despropósito aparente, mas garantindo continuidade à conversa que já viria de S. Bento, interrompida pela curiosidade de avalista que mede, de alto a baixo, cada novo intruso na composição ferroviária provisoriamente acantonada em Campanhã


— Ai eu também.


asseverou ela, solícita e solidária, após verificar e classificar a indumentária de uma rapariga muito novinha e de nívea pele, dando por insultuoso o redondo perfeito que sobrou do cordão umbilical e ali exposto, à vista de toda a gente, no epicentro de ancas salivares


— É que eu sei que tenho uma alimentação de merda.


volveu ele, cuidando ser novidade o que o fácies macilento, o cabelo baço e ralo e a arcada depauperada tornavam evidente aos ignaros da macrobiótica


— Pois eu faço questão de fazer três refeições, embora hajam (sic) dias em que não dá… Mas, desde que eu tome o pequeno-almoço e coma uma peça de fruta para o estômago não ficar vazio, já fico bem até à noite.


garantiu ela, com certa solenidade doutoral, ajeitando os óculos de leitura no parietal riscado por madeixas acentuadíssimas, como se um biscateiro da trincha houvesse empreendido a suprema vingança pelo pecado da vaidade


— Eu, de manhã, não sou muito de pão nem coisas assim…


tornou o homem, após breve silêncio


— Ai, já eu é cereais! Como montes deles! Até porque aquilo regula-me os intestinos.


assegurou a interlocutora, com uma felicidade algo estranha ao teor da conversação e cuja veracidade enfermava da correspondência com uma realidade bojuda que o cinto de cabedal, no limiar da tracção, não conseguia iludir


— Pois…


disse ele, pouco convencido, mirando os próprios sapatos, com gerações sucessivas de pomada negra, que acusam o desgaste das solas de borracha, a fazerem beicinho na costura lassa, amuadas por tão longa comissão de serviço


— E tenho de jantar. Pode até nem me apetecer, mas se me deitar com o estômago vazio…


continua a senhora, deixando subentendido um drama nocturno qualquer, cuja frequência é notória nas olheiras pronunciadas pela iluminação vertical do comboio


— Eu, de manhã, o meu pequeno-almoço é sempre dois iogurtes, mas por volta das onze e meia já tenho de comer.


retoma ele, reencaminhando o colóquio para terreno mais pacífico, que não redunde em confissões escabrosas de uma vida conjugal à deriva


— Eu sou tão despassarada que hoje de manhã tinha lá canja para o almoço e até me esqueci de trazer...


a cabeça dela, meu Deus, que já se afigura tão pouco recomendável por fora…


— Mas a sopa faz muito bem.


diz o homem, recuperando a lição ancestral que todos os petizes decoram logo nas primeiras experiências de alimentação sólida e sonoro bofetão que abre a boca mais renitente


— Eu tomei o pequeno-almoço, não posso mas comi, e depois ao almoço comi uma maçã, e agora a meio da tarde nem tive tempo de comer nada, por isso vou ter que grelhar qualquer coisinha...


diz ela, salivando costoletas com três dedos de altura e posta mirandesa acolitada por umas batatinhas a murro, por certo


— Eu vou cheio de fome, porque não trouxe farnel e não vou ao café armar-me em herói e pagar praí dois euros ou mais por uma sandes (sic) e um fino. Mas quem anda por cá o dia todo, tem uma alimentação de merda. Eu agora chego a casa e como de caraças.


disse ele, com o "caraças" alojado no abdómen rotundo no espaço que sobrou dos finos


— Olha, por falar nisso, já cá estou.


alerta a senhora, depois de prolongado silêncio, escusando-se a comentar o "caraças" do outro. Mira ainda o rosto, na vidraça espelhada pelo breu das nuvens sem lua, redondo e rubicundo pelo excesso de corantes, e levanta a custo o corpo anafado, na largueza de cintura que a escassez do casaco de ganga mais acentua


— Já viste que o "sim" ganhou?


atirou ainda ele, acenando o paliativo impresso e amarrotado pela impaciência da ileteracia suburbana à outra que já pousa o pé nos estribos da carruagem


— Não, nem sequer fui votar. Tive gente lá em casa, uma almoçarada em família.


demora-se ainda a senhora, o corpo todo já fora do comboio amarelo em descanso


— Pois… Eu também não fui.


confessa ele, algo amargurado pela falta cometida


— Deixa lá, que importa? São sempre os mesmos…


atira ainda a outra, numa última sentença antes de sair de cena em Águas Santas, eventualmente baralhada com os propósitos do sufrágio que ignorou


— Pois…


resigna-se ele, ajeitando a gravata azul marinho riscada por listas celestes, antes de recomeçar a percutir o pé impaciente até à derradeira estação em Travagem, folheando ainda o "Metro" sem que foto nenhuma ou título algum logrem distrai-lo da culpabilidade que o assalta, cônscio, afinal, de ter uma alimentação de merda.


Post Scriptum: No país inteiro, foram às urnas 3851613 eleitores (43.60% dos convocados), que decidiram concordar com a despenalização da prática do aborto “ nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Em Águas Santas, Maia, 67.23% dos 9405 votantes optaram pela despenalização, e 10309 ficaram em casa, numa eventual almoçarada em família. Em Ermesinde, a que pertence o lugar de Travagem, 14596 inscritos votaram, com 63.81% a grafarem “sim”. 18406 optaram por considerações mais importantes em torno das virtudes da sardinha para resgatar os infelizes de uma alimentação merdosa. Com êxito manifestamente duvidoso, já agora. Em Guimarães, terra minhota onde se reclama, em letras monumentais afixadas no centro da cidade, “Aqui nasceu Portugal”, pela lógica do lugar as questões abortivas não colhem: o “Não” foi a opção mais votada, com 31913 (52.29%) de eleitores a recusarem a despenalização do aborto.

18 de janeiro de 2007

Cronologia do Bombista Suicida Sem Fé



tic tac tic tac tic tac
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Cada passageiro desta nau de ferro tem um relógio inscrito na alma e um cronómetro sobreposto ao solfejo do coração, a vida agrilhoada por horários implacáveis e compromissos fúteis mas essenciais.
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tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic
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O cinismo dos ponteiros acusa um atraso permanente face à revolução que está por vir e há-de gerar múltiplos profetas de novas mudanças a celebrar. Via internet. Em tempo real. Instantâneo. Como num eterno presente decretado por burocratas punk que carimbam num impresso "NO FUTURE". Sem apelo nem recurso.
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A incerteza e os remorsos contaminam o gado preso neste vagão amarelo que devora segundos desprezando a cadência própria do simples respirar; o anacronismo irrevogável dos operários suburbanos e tabelados é já patológico
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… epidémico e até paranóico, nos casos gravíssimos dos pais recentes cujos rebentos desconhecem o conceito do minuto e a importância vital da pontualidade. Egoístas, os putos! Uma geração rasca, certamente.
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O desfasamento com a rotação inflexível desse mecanismo de ourives sem rosto nem compaixão suscita a terrível dúvida existencial: "Serei anacrónico?"
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Não, por Deus, anacrónico nunca!
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Ah, mas já ninguém escapa ao anátema da extemporaneidade, embora haja passageiros mais enfermos do que outros; os doentes terminais vão ali, dormindo um sono fugaz (para ganhar tempo…) estéril de sonhos. E vertem o cansaço sobre o ombro quebrado num fio de saliva grossa. A necessidade é sempre tão deselegante, mamã...
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E ocorre, por antítese, a passagem de um livro, sem mácula nem virtude, na qual um homem suaviza o abandono alegando partir apenas durante algum tempo e a consorte, sujeita à invernia do desamor, lhe replica com amargura de penitente: "Quanto é ‘algum tempo' em quilos? Para eu saber quanto me vai custar a tua ausência".
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Porque aqui, nesta masmorra sobre carris com grilhetas invisíveis e matiz enganador – amarelo piu-piu, Guiguinho, havias de gostar… – é a presença cronometrada do outro que já se torna insuportável no que dura a viagem sem atalhos: o seu discurso recorrente, a sua tosse constante, o seu riso sem timbre, a sua apatia derrotada, o seu silêncio raivoso, e até o seu dormir mórbido de tão obstinado e que ninguém deseja velar.
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Vão vergados pela nostalgia de uma Idade de Ouro ausente de ponto por picar. Sabem – e como ignorá-lo, se mataram já a criança que neles vivia? – que a sua condição suburbana e ordinária está comprometida, não com a glória de uma missão histórica, mas com a insignificância da existência mesquinha confinada à regra que se renova a cada dia. São como Sísifo, mas numa narrativa desprovida do maravilhoso e da errância. E sem Ítaca à vista.
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E nisto, por um destes dias, dispensado o psicanalista por falta de dinheiro ou de Fé, alguém descobrirá que o compasso desse relógio tirano pauta a contagem decrescente da bomba que nele existe. Porque cada passageiro desta nau de ferro é um bombista suicida cuja carga deflagrará. Numa hora qualquer, furtivo instante. Rasgando artérias e, no colapso do miocárdio, estilhaçando uma réstia de alma no silêncio da implosão.
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pum

17 de janeiro de 2007

Sol Matinal


O ruído pragmático e odioso do despertador enche o cérebro - indefeso na sua vadiagem alegre pela Ilha dos Amores ou tão só aconchegado no limbo do coma momentâneo -, escorre sistema nervoso abaixo, arrepia as pilosidades mais recônditas e assegura-nos que o comboio amarelo será inclemente no horário tabelado ao minuto.

Trôpego, precipita-se o passageiro suburbano narcotizado pelo sono, sempre demasiado breve, para o matutino verdugo portátil que também serve para comunicar quando o saldo lho permite. Desliga a sereia que, na razão da doutrina do ataque preventivo, o acusa desse crime hediondo de pretender descansar mais do que a ração permitida, e distingue, por entre a profusa ramela em que se petrificaram os humores nocturnos, um ícone promissor no rectângulo de cristais líquidos: mensagem.

"Ena! Quem será?", cogita o suburbano ainda ébrio, elaborando fantasias sobre o inesperado e o remetente.

"Peço desculpa d enviar uma sms a esta hora,m acabei d encontrar a sua carteira.Chamo me Nuno Freitas e trabalho na CP.Quando quiser ligue p este numero”.
Enviada:
17-Jan-2007
05:46:03

Ligou. E uma voz do outro lado, desculpando-se outra vez no meio de uma profusão de sons mecânicos, explica que sim, que encontrou a carteira, e que sim, que tem dinheiro (uma nota estaladiça de 50 euros!), e que sim, que não tem problema nenhum em deixá-la em S. Bento dali a nada, e que sim, que está ali para isso, sim, para servir os utentes, mesmo aqueles mais incautos, mais esquecidos, mais cansados. É a sua missão.

O utente suburbano já desperto percebe então que algo no seu Mundo pequenino, estruturado em larga medida em torno dos horários do comboio amarelo, mudou. Para melhor. Porque ainda há missionários como o maquinista Nuno Freitas e o revisor que ontem o acompanhou no comboio das 21.45 horas para Guimarães que têm sentido missionário, honradez e honestidade.

Coisa estranha nesta era do cinismo. Mas eles existem, e estão entre nós.

Ainda bem, e bem hajam.

P.S. – Fica a promessa de suavizar os insultos às vossas dilectas progenitoras nas oportunidades que, estamos certos, não faltarão…

8 de janeiro de 2007

Abismo Negro (com vista para o Éden)


Anda triste, este comboio com destino ratificado por um bilhete pedido a contragosto e que encerra uma viagem tormentosa, amputada desse novo e radioso sentido que, por momentos, uma ninfa de olhos tristes, furtada à vigília militar do arcanjo Gabriel, prometeu sem nunca o enunciar.
E, no entanto, segue cheia, a nave de ferro e vidro. Repleta de gente que cintila outra vez no artifício dos trapos novos, despojos das ferozes batalhas em que refocilaram na disputa dos saldos extemporâneos. Gente que volve ao bulício das certezas quotidianas com trejeitos e argumentos do costume - lamenta os excessos natalícios, exibe presentes e troca receitas, protesta contra a carga tributária, sonha com o calor dos trópicos, comenta a vida alheia, insulta árbitros e ministros...
Ah, mas esse bulício da normalidade suburbana que regressa ao expediente da sobrevivência não atenua a ausência da luz que, por três meses, iluminou os escaninhos da ferrovia. Há agora um vazio que canibaliza tudo em redor, abismo negro devorando a constelação artificial dos passageiros felizes pelo reencontro com os seus pares.
Anda triste, pois, este comboio. O amarelo que o recobre é bílis pura.
Anda triste este monstro de metal, esquife conduzindo à negra tortura sem a expectativa de um grão de luz que a possa atenuar...
Já não há bilhetes para o Paraíso?
Ou para um apeadeiro, que seja, lá perto?
Já não há bilhetes?...